domingo, 18 de março de 2018

Palácio Real de D.Manuel


O Paço Real de Évora, designado nas crónicas e documentos oficiais, antigos, de S. Francisco, por estar compreendido nos terrenos e em grande parte do primitivo convento dos padres regulares desta Ordem, teve seus princípios em tempo do rei D. Afonso V c.ª de 1470. Ocupando, inicialmente, a Sala dos Estudos, onde a tradição afirma que el-rei havia fundado a primeira Livraria da Corte, ainda em sua vida absorveu outras partes do mosteiro, incluindo certa zona da cerca, a qual era vastíssima, pois se estendia das Portas do Rossio à do Raimundo. D. João II, que pousou nos Estáus da Praça Grande, no Castelo, no solar da Torre das Cinco Quinas e no Convento do Espinheiro, deu incremento ao edifício realengo e construiu na horta o célebre pavilhão de madeira, em 1490, que decorou ricamente e onde se efectuaram os desposórios dos príncipes D. Afonso de Portugal e D. Isabel de Castela, aquela tão afamada boda que causou sucesso na Europa pela enormidade dos seus banquetes, torneios e festejos públicos, como diz Garcia de Resende na Crónica de D. João II, caps. CXVI e sgs. 

A mencionada ampliação, que abrangeu o levantamento das tercenas reais, foi determinada em conselho conventual, a instâncias de D. João II, e teve efeito em 2 de Novembro de 1493, sob presidência do guardião da comunidade, fr. Martinho, guardando el-rei, em compromisso corroborado pela chancelaria e confirmado pela Bula papal Ex-Comisso, de Alexandre VI, dada em Roma em 14 de Abril de 1495, a obrigação solene de reedificar e engrandecer a casa religiosa, que guardava, no futuro, para seu real padroado. Infelizmente, ao que se sabe, toda essa imensa obra de pedraria da época gótica e manuelina, onde era ornamento insubstituível a Sala das Embaixadas e os Refeitórios, desapareceu amalgamada na absorção utilitária de oficinas monásticas e na demolição definitiva do edifício em 1892-95. D. Manuel imprimiu à casa notória importância e originalidade e entregou aos arquitectos Marfim Lourenço, Diogo de Arruda e ao castelhano Pero de Trilho sucessivas empreitadas, que vão de 1507 a 1520 e se estenderam indistintamente pelo Convento, Capela Real e Paço de S. Francisco. Seu filho e herdeiro no trono, D. João III, aumentou a grande obra e concedeu-lhe uma dignidade jamais atingida através dos séculos, habitando na casa anos seguidos e conservando-a com esmero tanto no domínio arquitectónico, entregue aos cuidados dos padeiros g mestres de pedraria da Comarca, Francisco de Arruda e Diogo de Torralva, como no sumptuário, pois o seu recheio mobiliário e jardins foram famosos em Portugal. 

De facto, a residência era considerada, outrora, como a mais notável e grandiosa do reino, depois do Paço da Ribeira, de Lisboa. Na Sala da Rainha, do corpo gótico, se reuniram as cortes de Março de 1490, e nasceram vários dos filhos, mortos-nados, de D. Manuel e D. João III; no Verão de 1535, no edifício, se jurou herdeiro da coroa o jovem príncipe D. Manuel, durante as cortes nacionais para o efeito reunidas. Nas mesmas casas se deu, em 1497, a solene investidura de Vasco da Gama como comandante da frota de descobrimento do Caminho Marítimo para a índia, concedida pelo próprio monarca Venturoso: e nas décadas seguintes a corte assistiu a várias representações do imortal Gil Vicente, incluindo os Autos Pastoril Português, Auto de Mofina Mendes e a Floresta de Enganos, artista que a tradição local afirma ter-se finado nos paços de Évora cerca de 1536. D. Sebastião e D. Henrique pouco residiram aqui: o primeiro por preferir a casa dos Capitães-mores, situada ao lado do seu querido Colégio da Companhia de Jesus, e o Cardeal-Infante porque habitava propriamente adentro dos muros do mesmo estabelecimento cultural, onde havia fundado a Universidade do Espírito Santo em 1559. Servindo, de longe a longe, a pousada de príncipes, embaixadores ou religiosos do favor régio (D. António, Prior do Crato, recebeu nele lições do douto dominicano fr. Bartolomeu dos Mártires), a grande mansão alentejana, com o advento da dinastia filipina maior abandono sofreu, porque a permanência dos reis espanhóis na nossa terra, a partir de Filipe II, passou a fazer-se a longo prazo, originando uma oportuna petição da comunidade franciscana a seu favor, durante a visita a Évora, de Filipe III, em Maio de 1619. 

Satisfeito o pedido, segundo diploma régio de 28 de Setembro do mesmo ano e confirmado em capítulo presidido pelo provincial fr. António da Trindade, a entrega de boa parte do corpo palaciano verificou-se na presença do Provedor da Comarca, Dr. Paulo Gomes da Fonseca e Gaspar Velho, almoxarife dos paços, compreendendo a Sala da Rainha e duas câmaras contíguas ao dormitório fradesco, destinadas estas a Enfermarias monásticas. Na mesma dotação se encorporavam os jardins e laranjal. Especificava o Alvará, todavia, que em tempo algum se poderia modificar a traça monumental dos imóveis ou construir obra de alvenaria nos espaços destinados a recreio, porque, diz o documento, quando aquele monarca ou quaisquer dos seus sucessores desejassem reedificar os paços para seu aposento, a comunidade seria constrangida a restituir, pura e simplesmente, as mercês neste diploma outorgados. Data deste período a integração do maior e mais belo conjunto gótico-manuelino do Paço Real de Évora na amálgama conventual e, desta forma, veio a sofrer as vicissitudes impostas ao edifício quando da sua extinção em 1834. Assim, segundo o Dec. Lei de 25 de Julho de 1845, a Câmara Municipal obteve do Governo certas partes do edifício, o refeitório manuelino e anexos para neles instalar o Tribunal e a Junta de Freguesia de S. Pedro: quatro anos após, vasta zona palaciega, o belo claustro quinhentista, os Gerais e o Noviciado vieram a terra para darem lugar ao novel Mercado Público da cidade. 

No ano de 1873 outro crime irreparável se cometeu - a destruição integral da típica torrinha do Aqueduto da Água da Prata, desenhada pelo arquitecto Francisco de Arruda - sobranceira ao pórtico da Igreja de S. Francisco, obra da maior curiosidade de arquitectura do estilo da Renascença. Finalmente, o Dec. Lei de 19 de Abril de 1892, assinado pelo rei D. Luís, autorizou a Câmara a vender os restos do Paço e Convento, onde estava encorporada a famosa Sala da Rainha e grande parte dos claustro gótico de 1376. Mais afortunado foi o destino do pavilhão meridional, a conhecida Galeria das Damas, que desde épocas antigas a coroa entregara ao Conselho de Guerra e onde subsistira um depósito de material militar designado do TREM. Nele se haviam acomodado pertences municipais, se realizaram festividades e representações populares; serviu, também, no corpo térreo, de Museu Arqueológico Cenáculo até que no Inverno de 1881, por desabamento de grande parte das coberturas, que já não eram as primitivas, ficou em grave ruína. Pouco tempo volvido, com licença da Câmara, a Junta Distrital determinou aproveitar o edifício para Museu de produtos naturais e industriais do Distrito, formação incipiente de um Gabinete etnográfico que não pôde levar avante, mas originou o seu restauro e utilização para casa de espectáculos públicos, e a adaptação foi entregue aos estudos do eng. Adriano da Silva Monteiro que, dentro do critério e planos coevos, lhe introduziu modificações de tal forma substanciais que o descaracterizaram estruturalmente. 

Cumpre, todavia, esclarecer que esse projecto, conduzido conforme o gosto romântico da época, onde predominavam as armações de ferro fundido, grandes superfícies de vidraria num agigantado segundo andar sobrepujado por lanternim de cobertura piramidal e a escadaria de dois lanços, que eliminara outra muito mais antiga, de encosto ao lado sul do torreão, embora mascarassem o todo arquitectónico primitivo, não conduziu a uma destruição irreparável do esqueleto quinhentista do imóvel. Transformado então em Teatro Eborense nele se inauguraram as sessões cinematográficas e se realizaram algumas festas solenes e exposições de floricultura dedicadas aos reis D. Luís e D. Carlos, até que, na madrugada de 8 de Março de 1916 um incêndio de grandes proporções o destruiu parcialmente. Do valioso palácio, que ocupava vastíssima área coberta e descoberta, com vários corpos e pavilhões, chegou ao nosso tempo apenas, a galeria quinhentista designada das Damas, que a Direcção Geral dos Monumentos Nacionais restaurou ultimamente (1943-1947). Se o restauro merece louvores incondicionais, por ter salvo de ruína e do abandono confrangedor as históricas paredes, o critério adoptado para uma tentativa de reconstituição arqueológica parece ter falhado em muitos aspectos que alienaram, irremediavelmente, a possibilidade de uma reintegração pura dentro das formas usuais da arquitectura manuelina. 

O pavilhão, construído nos sentidos norte-sul, em plano rectangular, tem, actualmente as dimensões exteriores seguintes: comprimento total, 57,70 m largura, 11,70 m. Compõe-se de três partes distintas, a saber: Corpo principal, a sul, ornamentado pelas janelas manuelinas e terminado com o eirado voltado para a planície alentejana; parte central, incluindo a torre de andares e o pavilhão correspondente e, finalmente, a galeria do norte, muito modificada no séc. XIX mas que mantém, com a pureza original, a alpendurada da época manuelina. Este corpo, de vãos abertos, onde se recolhia a carruagem, compõe-se de quatro tramos de arcos plenos, de alvenaria, apoiados em duas naves de pilares de granito decorados por capitéis e ábacos encordoados, revestidos de toros, nós, discos e outros elementos manuelinos, sem excluir, evidentemente a flora da arte coetânea. Curiosa mísula granítica existe no arco exterior (lado nascente), de laçaria terminada por cabeças de bichos estilizados. A abóbada é de ogivas chanfradas, de alvenaria, com chaves de granito lavradas ao gosto da 1.ª vintena do quinhentismo, de temas naturalistas. 

Externamente, esta parte do edifício está reforçado por botaréus de andares ornamentados com bolas; o piso alto, de arcadas de quatro arcos abatidos, com colunelos de granito e ornamentos frustes e reproduzindo temas manuelinos são, na totalidade, modernos e acusam nítido desgaste da violenta acção do fogo de 1916. Muito mais interesse artístico possui o lado meridional, embora de menores proporções, de empenas guarnecidas, no piso nobre, com dez formosas janelas geminadas, de arcos ultrapassados em desenho de ferradura, de granito e colunelos de mármore regional finamente ornamentados nos capitéis, ábacos e bases, por motivos comuns ao manuelino: cordame, bolas e nós, vieiras, uvas e parras e outros elementos florais. Os capitéis, de planta quadrangular e as bases de secção poligonal, acusam a nítida influência árabe então dominante na cidade, a que não estão alheios os mestres arquitectos coevos: Diogo de Arruda, Martin Lourenço, Duarte de Medina, Álvaro Anes, etc. Lateralmente, as janelas são guarnecidas por altos mastros ou toros circulares, interrompidos com ornamentos naturalistas e geométricos, habituais na decoração mudejar-manuelina desse tempo. No corpo do rés-do-chão rasgam-se, igualmente, dez janelas de profundos vãos, em arcos abatidos e chanfrados, de granito aparelhado, em cujas jambas e dintéis subsistem vestígios mutilados de decoração relevada. Esta dependência do palácio, depósito de guerra, originalmente composta de cinco tramos e duas naves e hoje somente com três tramos, porque a obra de restauro lhe alienou dois da entrada, conserva as coberturas e seus pilares de secção octogonal, com capitéis cilíndricos, emoldurados e bases quadradas, com ornamentos de vieiras estilizadas. O salão, construído no tipo severo e utilitário das obras da época final do remado de D. Manuel, com abóbada de arcos abatidos e redondos, tem robustas nervuras de aresta viva, desornadas de bocetes terminais. 

O torreão axial, voltado ao Nascente, é a parte mais nobre e melhor equilibrada de todo o edifício. De planta rectangular, em dois andares e rés-do-chão, este apoia-se em robustíssimas albarradas de granito aparelhado, sendo uma nova e substituindo o pano de muralha quatrocentista que, até meados do século passado, ligava o palácio à fortificação medieval. A cobertura, de secção hexagonal, muito agulhada, possui veios de aresta viva terminados em volutas de enrolamento e pináculo circular de cata-vento de ferro forjado, com a Cruz de Cristo, modernos. Nos ângulos faciais do beirado, subsistem duas curiosas gárgulas de calcário branco, em representação zoomórfica. O interior da torre, nos três pisos, embora melhorados, conserva a estrutura primitiva. O rés do chão, com dois portados de arcos de ferradura, agora obstruídos e feitos pelo eng. Adriano Monteiro depois de 1881, tem abóbada nervada, de simples chanfradura com chave de granito, em pinha de andares, manuelina e, na face exterior, a oriente, uma bela janela de peito, proveniente da demolida Sala da Rainha, do mesmo Paço de S. Francisco. Esculturada em mármore branco, da região, tem meias colunas nas jambas, base lavrada ao gosto clássico, de motivos naturalistas e dintel de cordão e óvulos estilizados afrontados por medalhão de figura masculina tratada à maneira romana. O primeiro andar, ostenta três elegantes arcadas geminadas, de volta inteira, apoiadas em colunas de mármore branco, com capitéis de andares, alguns revestidos de discos manuelinos, de molduras poligonais e bases entrançadas, circulares ou octogonais. Cobertura de aresta, vulgar. 

O arco de comunicação ao corpo nobre, é de carena, de toros ornamentados por cordas e nós, donde rompem, no tímpano, duas esferas armilares, terminais, de granito, e o armorial da Casa Real Portuguesa, de calcário, com as empresas manuelinas e a Cruz de Cristo, em composição triangular rematada por urna piriforme prenunciando as formas renascentistas. Portado interno, simples, de vergas e jambas de granito chanfrado, com elementos flordelizados. O último andar, que parece obra ligeiramente posterior ao projecto primitivo da Galeria das Damas, já da época de D. João III e que se atinge subindo estreita escada helicoidal, desenhado na fachada poente e muito beneficiado nos restauros de 1881 e 1943, tem cobertura octogonal assente em trompas, de alvenaria e discreta chaminé que arranjos práticos haviam destinado a uso do caserneiro, quando o edifício foi adaptado a Trem Militar. Três formosas janelas de peito, rectangulares, dos alvores do 2.° terço do séc. XVI, guarnecem as fachadas: são todas apilastradas, com frontões de vieiras e interessantes leques, abertos, ricamente esculturados, fachos laterais, vegetalistas e remates de umas e o serpe manuelino. Nos dintéis, rosetões de flores e os aventais, em baixo-relevo, são revestidos de formas renascentistas e platerescas com grandes S curvilíneos, entrelaçados, recobertos de vestígios marinhos e exóticos. Esta ornamentação, bem rara e estranha na arquitectura portuguesa coetânea, evoca a arte decorativa da vizinha Espanha, principalmente da região de Salamanca, de que não deve estar afastada estilisticamente. 

O pavilhão central correspondente ao mesmo andar, é obra moderna, coberto por telhado de quatro águas iluminado de igual número de frestas e de tecto apainelado, em estuque branco, ao gosto setecentista. O corpo nobre, cujo acesso se faz através de cómoda escadaria cocleada, de mármore branco totalmente construída nas grandes obras do Estado entre 1943-47, compõe-se de três salas ligadas e divididas somente por pequeno vestíbulo de triplas arcadas de arcos de ferradura apoiados em colunas de granito com ornamentação manuelina, que nascem de altos pedestais da mesma pedra. As coberturas, inspiradas em tectos de alfarge, árabes (o do lado Sul) e na antiga carpintaria artística portuguesa, de esteiras e caixotões geométricos, policromos são, do mesmo modo, obra moderna mas executada dentro de modelação inteligente e apropriada ao lugar. Finalmente, a galilé meridional, que tanto encanto concede ao velho paço quinhentista e outrora caía sobre o fosso militar, é utilizada como eirado através de duas elegantes portas maineladas, em materiais e desenho idêntico às janelas de todo o pavilhão contíguo. É composto, o alpendre, de cinco arcos ultrapassados e denticulados, de ferradura e tijolo vermelho, abraçados por toros circulares, lisos, de granito e por cordão contínuo que envolve toda a arcada e as respectivas mísulas. Pilares graníticos, chanfrados, quadrangulares e os angulares de secção poligonal, suportam o balcão, que é ornamentado com cruzes de Cristo encerradas em tabelas quadrilobadas, de trabalho recente, devido à reconstrução do eng. Adriano Monteiro, de 1885. 

BIBL. Pe. Francisco da Fonseca, Évora Gloriosa, Roma, 1728, pág. 348; Dr. Augusto Filipe Simões, Archivo Pitoresco, Lisboa, 1868; Túlio Espanca, Palácios Reais de Évora, Cadernos de História e Arte Eborense, III, 1946; Henrique da Fonseca Chaves, As obras do Palácio de D. Manuel, in A Cidade de Évora, 17-18, 1949, págs. 317-327; Boletim da Direcção dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Palácio de D. Manuel, Março de 1955 - n.° 79. 

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