segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O URBANISMO DE ÉVORA NO PERÍODO MEDIEVAL

Nada mais banal e ao mesmo tempo mais verdadeiro do que ver no urbanismo de uma cidade como Évora, em que a espessura da cronia se impõe ao observador como um dado incontornável, uma sucessiva re-escrita, um palimpsesto em que os textos anteriores fossem sucessivamente apagados para dar lugar às últimas leituras não sem deixarem de si traços a permitirem propostas de decifração. A cidade é assim ela própria estratigrafia, nas suas estruturas aparentes como nas invisíveis que o acaso das intervenções urbanas e a acção dos arqueólogos vai evidenciando. E os estratos mais antigos, aqui os medievais, datados do período islâmico ou do primeiro cristão são, pelas leis que regem qualquer processo de sedimentação, os de mais difícil leitura e interpretação. O que implica questionar a imagem da cidade enquanto centro eminentemente medieval quando a maior parte das estruturas aparentes se apresentam modernas, isto é, dos séculos XVI, XVII e XVIII, e precisar o que se entende por “medieval”, rejeitando a projecção retrospectiva dos dados do urbanismo tardo medieval, consolidado e definido em Trezentos pela construção da cerca nova, sobre cronologias anteriores. O que se segue, necessariamente esquemático e propositadamente fragmentário, como convém quando apenas de fragmentos do real se entende, assenta nestes pressupostos.
Muito pouco se sabe, de definitivo e seguro, sobre a organização do espaço urbano na cidade islâmica de Yabura. Na ausência de resultados análogos àqueles que iluminaram fragmentos de tecido urbano nas alcáçovas de Mértola ou de Silves, ou ainda em Santarém, na Sé de Lisboa ou em Palmela, a reconstrução da malha urbana assentará essencialmente na definição dos seus limites, bem como na da sua área áulica. E, nesses limites, está talvez a chave para decifrar as relações que o núcleo islâmico mantém com o então próximo passado romano prolongado na Antiguidade tardia visigótica. O que define e configura a cidade são os seus muros e, não por acaso, o grosso dos informes que ficaram sobre o edificado de Yabura diz respeito a essas estruturas que, mais uma vez não por acaso, são romanas. Se fossem necessárias provas, outras que as da tipologia construtiva – que poderia encaixar também nos esquemas andaluzes do período omíada, tendentes a preservar as técnicas de alvenaria romanas – as escavações recentes na Alcárcova de Cima mostrando a sobreposição da muralha a uma casa do século III, o que é consentâneo com a cronologia de amuralhamento dos centros urbanos a partir deste período, dissipariam todas as dúvidas sobre a origem da cerca que envolve os cerca de 12 ha correspondentes ao espaço intra-muros durante os mais de mil anos seguintes1. Isso significaria que a matriz da malha urbana de Yabura é romana, ainda que tardia, e se mantém sem soluções de continuidade estruturais até ao crescimento, difícil de datar com precisão, que conduzirá à redefinição do século XIV.
O que não se faz sem adaptações na utilização do espaço que reflectem e permitem medir o pulsar das conjunturas ao mesmo tempo que indiciam o reordenamento de equilíbrios internos na cidade. A este respeito, o saque da cidade protagonizado por uma hoste comandada por Ordonho II em 913, constitui-se como um ponto de observação privilegiado, sobretudo por o acontecimento ter sido suficientemente marcante para, a partir da sua fixação inicial numa crónica regional coeva, encontrar o seu caminho em direcção à grande compilação do século imediato, Muqtabas. A. Sidarus já se ocupou demoradamente da exegese, interessando-nos aqui sublinhar os focos que este lança sobre o urbanismo de Yabura. De facto, o espaço construído e as intervenções por ele sofridas antes, durante e depois da tomada e abandono da cidade pelos cristãos, desempenham um papel decisivo na economia da narrativa. Desde logo Ordonho decide tentar o ataque justamente depois de observar o mau estado da cintura de muralhas. Embora tivesse recebido nalguns pontos trabalhos recentes – seguramente contextualizáveis no quadro da integração de Évora na esfera de influência da dinastia regional fundada por Ibn Marwan na centúria anterior e que à data da ofensiva cristã constitui o único referente político, enquanto se espera a reanimação da autoridade omíada que virá com ‘Abd al-Rahman III – o muro romano havia por então perdido a maior parte da sua funcionalidade defensiva: a muralha “[…] era baixa e não tinha, no topo, parapeito nem ameias. Havia, numa zona do exterior, um elevado  montão de lixo. Os habitantes da cidade costumavam atirá-lo para ali, a partir do interior da muralha. Com o tempo, tinha alcançado quase a altura dela em alguns pontos.” É seguramente também essa degradação estrutural, junta com a má qualidade das obras recentes que permitem aos cristãos abrir uma brecha precisamente nessa área, que vai facilitar a demolição dos muros que o senhor de Badajoz ordenará em Évora depois do saque de Ordonho, temendo que a cidade deserta – a população fora chacinada, os notáveis haviam fugido – viesse a ser ocupada pelos berberes. Porém, a intensiva actividade de reparações nas fortificações das cidades do Gharb que resulta do inesperado sucesso da operação cristã dará aqui também os seus frutos: ‘Abd Allah Ibn Marwan, o senhor de Badajoz, tendo entregue a cidade a um seu aliado e vassalo, Ma’sud Ibn Sa’dun, apresta-se a repará-la. A descrição das obras dá-nos a medida da extensão dos danos anteriores ao mesmo tempo que limita a extensão da reconstrução: “[…]tapou-se a brecha, consolidaram-se os contrafortes e colocaram-se portas pesadas.”
Assim, não só a cerca romana havia sobrevivido à usura do tempo, à desactivação funcional dos séculos anteriores e ao ataque cristão, como um fragmento anterior do mesmo texto que refere uma destruição total das muralhas pelo senhor de Badajoz (“[…] destruiu as torrres e deitou abaixo o resto das muralhas, até ficarem rente ao chão […]”), talvez contenha, em partes iguais, tanto de realidade como de retórica celebrativa da capacidade de intervenção do senhor regional, sublinhando a destruição para depois exaltar a reconstrução. Uma coisa é certa: os trabalhos seguem o traçado imposto pela muralha pré-existente, reforçando-a sem dúvida, mas recuperando a maior parte dos elementos construtivos e mantendo inalterado o perímetro urbano. Se a atribuição da face A da lápide encontrada na cave do museu de Évora ao início do século X, não longe do que será depois o alcáçer, estiver correcta, essas obras mas sobretudo a refundação da cidade por ‘Abd Allah, serão celebradas também, como era costume, através de inscrição comemorativa.
Através da narrativa do Muqtabas podem ainda descortinar-se alguns fragmentos do que seria o tecido urbano islâmico. Destaca-se, em primeiro lugar a ausência de referência a quaisquer arrabaldes que, a existirem, não deixariam de ser presa imediata de Ordonho.
Deve pois concluir-se pelo carácter tardio dos arrabaldes perfeitamente identificados já no século XIII mas de antiguidade dubitativa. Não é impossível que resultem do processo de crescimento que o texto de Ibn Hayyan situa a partir da reconstrução de inícios do século X, prolongando-o até à centúria imediata, hipótese mais credível que a de uma datação posterior à conquista cristã, sobretudo porque entre 1165 e a consolidação da fronteira de Além-Tejo nos anos trinta de Duzentos, não há, nem poderia haver, qualquer indício de crescimento urbano em torno de Évora. Em segundo lugar, assinale-se o silêncio do texto sobre algum recinto fortificado no interior do perímetro das muralhas que pudesse assemelhar-se a um alcáçer que, existindo, teria desempenhado papel relevante na defesa da cidade. Em seu lugar parece estar o espaço vazio e “apertado” a leste da madina onde a população encurralada será chacinada. No final do século XII, contudo, nesta zona, a mais elevada da medina, estão os dois alcáceres, o velho e o novo. A sua construção há-de ser pois posterior a 914, uma vez que não há dela notícia no texto do Muqtabas, e com certeza anterior a 1165, não estando documentada qualquer intervenção nesse espaço no reinado de Afonso Henriques ou no seguinte. Um outro elemento no texto, porém, torna mais complexo o problema. Trata-se da referência a uma mesquita do governador (‘amil), onde este foi morto. Tal implica a existência de uma área áulica, ainda que não protegida por uma cintura defensiva, no centro da qual se situaria a mesquita – uma matriz para o futuro alcáçer com a igreja de S.Miguel? – desdobrando a funcionalidade da mesquita aljama, localizada em posição incerta – a sé constitui uma probabilidade evidente mas necessitaria de comprovação arqueológica – no interior da madina. A última referência topográfica no texto de Ibn Hayyan reveste-se de particular importância porque diz respeito à reutilização dos edifícios romanos em novo contexto: “[…] uma dezena de notáveis […] refugiaram-se com as suas famílias num daqueles edifícios antigos, entrincheirando-se no topo dele […]”. A analogia com a passagem da crónica de Fernão Lopes que mostra os revoltosos de Évora a assediar o castelo a partir do cimo do velho templo romano, transformado em fortificação, não podia ser mais evidente. Outro dado a mostrar que, dessacralizado, o monumento faria parte nesse período da zona
áulica, próximo ou no interior do bairro ocupado pela elite muçulmana e, provavelmente, o único ponto fortificado defensável – e inexpugnável visto que apesar do assédio dos cristãos ter durado o dia inteiro, não só não conseguiram assegurar a posição, como as famílias lá refugiadas acabaram por conseguir sair aproveitando a calada da noite – no interior do perímetro das muralhas.
O conjunto de informes aduzidos lateralmente pelo texto do Muqtabas parece assim configurar um padrão urbanístico para a cidade de Évora oferecendo garantias mínimas de plausibilidade para o período anterior ao califado em que a madina se encontra sob o controlo de poderes regionais, eles próprios de origem muladi e portanto indígena: manutenção do perímetro de muralhas da época romana como elemento balizador do espaço urbano, mesmo quando o seu mau estado e os acasos da guerra obrigam a uma reconstrução; uma diferenciação sociológica do espaço urbano e uma área áulica identificável, não plasmada, porém, numa estrutura fortificada autónoma dentro da madina; recuperação, ainda que em novas funcionalidades, de edificações emblemáticas antigas. No conjunto, dir-se-ia, ainda uma cidade da Antiguidade tardia, sem que nenhuma ruptura radical tivesse vindo interromper a natural evolução do primitivo tecido urbano romano. Conservação dos limites, com certeza também da diferenciação funcional dos espaços, variações nos conteúdos funcionais resultantes da islamização mais do que da ausência de um poder central, cujas funções são, pelos fins do século IX e princípios do X, absorvidas pela dinastia dos Banu Marwan sediada em Badajoz.
As transformações que os primeiros registos cristãos depois da conquista documentam – o duplo alcáçer, depois os arrabaldes – mostrando uma madina que cresceu e se complexificou na organização interna do espaço, devem pois datar-se dos 250 anos que medeiam entre o início do período califal e a conquista cristã. Todos os indícios, embora esparsos, diria esqueléticos, para aí apontam. Em primeiro lugar a questão do alcáçer ou, como se lhe referem os textos cristãos do XII, o “alcáçer velho”. Embora mais uma vez aqui só campanhas arqueológicas suficientemente abrangentes nos pudessem dar certezas, pensamos poder atribuir ao período califal a construção do recinto, já por não haver qualquer notícia dele anterior, já pela analogia de situação de Mérida, outro – e mais importante – centro da autonomia regional de base muladi. Aí a submissão ao poder central restaurado e sediado em Córdova, passou precisamente pela construção de uma fortificação interna ao mesmo tempo virada contra a cidade e vigiando a velha ponte romana. Se excluirmos a variável representada em Évora pela ausência do rio a situação do alcáçer era a mesma, aproveitando aqui o ponto com a cota mais alta e ao mesmo tempo mais periférico à cidade. Por essas mesmas razões, o complexo do depois palácio do conde de Basto deve corresponder a este alcáçer por ventura califal, mais tarde entregue pelo rei aos freires da ordem de Évora. Se esse núcleo inicial fortificado no interior das muralhas datar do período califal, inserindo-se na política de controle dos centros urbanos que ‘Abd al-Rahman III inaugurou, resta ainda explicar o segundo, aquele a que os textos cristãos de Undecentos qualificam de “novo”. Não sabemos nada de preciso sobre a sua estrutura ou aparência, tendo as destruições praticadas pelos revoltosos de 1384 no castelo bem como a obra do palácio Cadaval obliterado ou recoberto a construção primitiva. No século XII, porém, ela devia parecer ainda bastante recente e, sobretudo, claramente destacada do complexo do alcáçer velho. O que a remeterá para uma fase bastante mais tardia que a deste. Um período plausível seria aquele em que a cidade serve de centro secundário para os aftássidas de Badajoz, na segunda metade do século XI, sobretudo durante o tempo em que o depois último rei da dinastia, al-Mutawakkil, aí foi governador. O paralelo com o palácio de Silves que albergou um al-Mu’tamid a ocupar idênticas funções, bem como o surto construtivo que ocorre por todo o lado durante as taifas – os alçáceres de Sevilha, o primitico zirida de Granada e a Aljaferia Hudida de Saragoça são os exemplos mais siginificativos – permitem pensar provável esta hipótese. A construção pode no entanto ser bem mais tardia e o uso do adjectivo “novo” pelos conquistadores cristãos torna plausível, diriamos mesmo provável, que se tratasse de uma edificação posterior ao último período taifa. O que recolocaria o problema do seu contexto cronológico. A este respeito uma inscrição datável dos anos de 1148 a 1150 e que comemora uma fundação feita por um senhor da guerra que opera por esses anos à escala regional, Sidray Ibn Wazir, com um sucesso que lhe permitirá ostentar então o título soberano de Imam, pode permitir aclarar a questão. Trata-se desde logo de uma inscrição fundacional o que implicaria uma edificação de alguma visibilidade, suficiente para garantir prestígio a um senhor cuja posição e legitimidade estavam longe de ser suficientemente seguras, como os acontecimentos posteriores haveriam de mostrar. Para o sublinhar Ibn Wazir escolheu como suporte não uma qualquer pedra mas, invertendo-a, o verso daqueloutra inscrição fundacional provavelmente comemorativa da refundação de Évora depois do saque de Ordonho. A apropriação de uma memória prestigiosa mas suficientemente longínqua para poder ser obliterada e reaproveitada em novo contexto. Este facto e o próprio local do achado – recente, de 1968 – nas fundações do paço episcopal, muito perto do local do alcáçer novo, reforça a probabilidade de esta ser a própria inscrição fundacional do alcáçer ou de uma estrutura a ele associada. O que seria um sinal não só da importância deste movimento taifa de meados do século XII, como da pujança urbanística da cidade nos finais do período muçulmano, justificando numa perspectiva de continuidade o surto de crescimento que se evidenciará na cidade cristã dos séculos XIII e XIV assim como a primazia por ela assumida no contexto regional em todos os séculos seguintes.
Outros indícios embora extravasando da esfera estrita do urbanismo, convergem, aliás, no mesmo sentido. A começar pelas referências à prosperidade e crescimento da cidade feitas, de um ponto de vista que é o do século XI, pelo já citado Muqtabas, depois genericamente corroboradas pelos sinais da sua crescente importância política sobretudo face a Beja, que, no primeiro milénio, concentrara em si a maior parte das funções centrais à escala regional, agora perdidas para Évora, numa tendência que a conquista cristã manterá. Embora ainda exíguo se comparado com o de Beja, o aparecimento nos séculos XI e XII de alguns intelectuais num centro urbano como Évora de onde eles antes pareciam completamente ausentes, parece confirmar esta tendência para o crescimento.
Neste quadro, poderá haver fundamento suficiente para pensar numa expansão precoce do centro urbano, de qualquer forma anterior à conquista cristã. Adaptando-se às novas circunstâncias políticas que implicam uma tentativa de controle mais apertado por parte de poderes externos à cidade, materializada na construção de um complexo de alcáçeres que Afonso Henriques herdará, ela mantém-se apertada na sua cintura de muralhas romanas refeitas que os indícios de crescimento populacional evidenciam ser insuficiente. Os arrabaldes documentados a partir de Duzentos acabam por o provar. O espaço urbano no período da pós reconquista Quando, muito provavelmente, cerca de 1176 ou pouco tempo antes, os chamados freires de Évora, se instalam, sob o comando de Gonçalo Viegas de Lanhoso, no interior da cerca romana de Évora, na zona que mais tarde viria a ser chamada de Freiria, protagonizam um movimento de substituição de senhores e de poderes no espaço urbano recém conquistado. À conquista militar da cidade em 1165 pelas forças de Geraldo Sem Pavor e à entrega do núcleo à jurisdição de Afonso Henriques seguiu-se um processo de apropriação e de redistribuição dos espaços conquistados por diferentes protagonistas directamente intervenientes no movimento de conquista ou que dela usufruiram nos anos imediatos. E entre os primeiros estiveram, desde cedo, os chamados freires de Évora, cujo nome de origem os liga indissoluvelmente à cidade na qual se instalaram pouco tempo após a sua conquista pelos cristãos e dentro da qual assumiram um papel central na sua defesa e manutenção.
Daí que seja pouco importante afirmar com certeza se a fundação destes freires se ficou a dever ou não à necessidade da defesa da cidade conquistada em 1165. O que é certo é que a funcionalidade desta nova ordem se confunde, nos primeiros anos de existência, com a defesa de Évora e do território em que esta se inseria e o espaço interior no qual os freires se instalam no final da década de setenta do século XII reflecte esta mesma funcionalidade.
Com efeito, em 1176, Afonso Henriques entregava à posse destes freires umas suas casas situadas em Évora com o seu alcácer velho, além de outros bens situados em Évora e em Coruche. A instalação da ordem neste alcácer velho, localizado junto ao actual Páteo de S. Miguel ou nas proximidades do palácio dos Condes de Basto, representou a ocupação e revitalização de um anterior espaço de forte conteúdo militar mas reflectiu ainda a acentuação da centralidade de um espaço fortificado situado no interior da cerca romana. Na verdade, a Évora da pós reconquista, da segunda metade do século XII e das primeiras décadas de Duzentos era um centro articulado em torno do poder militar, essencial à sua sobrevivência, e do poder religioso, cedo presente na malha urbana e na malha dos poderes com influência na cidade. Se o primeiro convergia na zona amuralhada herdada da ocupação muçulmana, o segundo acabará por ocupar, em data incerta ou pelo menos discutível, um espaço relativamente próximo da alcáçova mas polarizador de um outro eixo que abria para uma outra centralidade da cidade, ligada às actividades económicas e já não apenas às necessidades de defesa de um núcleo.
Retornemos, porém, ao primeiro destes espaços e equacionemos algumas das dúvidas que sobre a sua organização têm vindo a tecer diferentes historiadores e estudiosos. Com efeito, muitas discussões subsistem sobre a extensão da zona fortificada possivelmente herdada do período muçulmano e sobrevivente no interior da cerca. As menções cronologicamente próximas a um alcácer velho e a um alcácer novo, o carácter lacunar das informações para a Évora muçulmana e para a Évora da pós conquista cristã, dificultam o conhecimento da malha urbana, da extensão e mesmo da sua organização interna para as primeiras décadas da segunda metade de Duzentos, sendo grande a tentação de ler o urbanismo de final do século XII e do início de Duzentos como a herança directa das décadas anteriores. No entanto é de supor que a marca cristã se tenha feito gradualmente sentir no espaço vivido da cidade conquistada, recuperando por um lado antigas e contínuas funcionalidades, como acontecia com o espaço dos alcáceres velho e novo entregues à ordem dos freires e que, no conjunto, deviam incluiro núcleo central fortificado da cidade, naturalmente defensável e estrategicamentesituado, mas alterando outras, como acontecia com o poder religioso articulado em torno do poder diocesano, restaurado desde, pelo menos, 1166. E este, independentemente da situação do templo primitivo, foi, desde cedo, um centro ordenador do espaço fisico e simbólico de Évora.
Com efeito, mais uma vez se torna dificil afirmar com clareza a localização de um hipotético templo primitivo cristão, sede anterior de uma Sé datada já da segunda metade do século XIII. No entanto, nem por isso a presença do poder do bispo se fazia sentir com menos vigor, em especial quando a fase da conquista e da defesa passou e a cidade se adaptou gradualmente ao viver e à presença cristãs. Na verdade, no início de Duzentos, a linguagem da guerra e a pressão ditada pela proximidade do campo de batalha pareciam relativamente afastadas. É claro que a ameaça almôada de vinte anos antes tinha feito perigar os campos em redor de Évora, cuja defesa entregue aos seus freires tinha conseguido resistir, face à violência dos ataques, usufruindo talvez de uma relativização do interesse muçulmano por esta praça a sul da fronteira do Tejo em favor de outras localidades mais estratégicas para os seus interesses militares e económicos. Mas ultrapassada a violência desses anos, a tendência seria para a integração da cidade no reino cristão e na malha das suas hierarquias.
O conflito que no início de Duzentos se desenha, pela primeira vez, entre os freires de Évora e o bispo da nova diocese prova que um novo equilibrio se esboçava na cidade após o domínio do poder militar. O que então estava em causa, entre outras questões, era o estatuto da capela de S. Miguel, detida pelos freires na zona da alcáçova, na qual se celebrava missa e um sino chamava à celebração. Fundada, possivelmente, pelos freires pouco após a sua fixação, este templo poderá ter sido um dos primeiros a ser instalado no espaço intra muros após a conquista, talvez até antes da primitiva sé de localização desconhecida. Mas no início do século XIII a sua existência representava um problema para os poderes diocesanos. O acordo que procura pôr fim a uma anterior conflitualidade de duração desconhecida referia a celebração de missas, a recepção de dádivas, um comportamento religioso, enfim, que aproximava a capela de S. Miguel de qualquer outra igreja paroquial. E esse era, aparentemente, o perigo para os poderes diocesanos. A capela de S. Miguel deveria ser para uso exclusivo dos freires aí instalados e a celebração de missas deveria reduzir-se a alguns dias previamente estipulados, de forma a que nada a confundisse com uma igreja paroquial, fundada e
desenvolvida num espaço demasiado contíguo ao espaço de influência dos poderes diocesanos, entregue, para mais, à jurisdição de uma ordem militar.
Na verdade, este conflito, um dos poucos, que se debruça sobre o espaço urbano para uma cronologia tão recuada, reflecte um primeiro confronto entre os dois poderes do período do pós reconquista, um conflito que anuncia o fim gradual do domínio militar e prenuncia uma nova estrutura e novos eixos de organização da vivência urbana.
E, na verdade, em 1211 Afonso II confere à Ordem de Évora um novo destino: Avis.
Neste espaço, para o qual os freires de Évora resistirão a mudar, irá a ordem buscar um novo nome, novas propriedades e mesmo uma nova memória. É verdade que a sua ligação a Évora se mantêm, pela posse de casas e de alguns bens no interior e nas imediações da cidade, mas os tempos eram já outros nos meados de Duzentos.
A centralidade urbana dos poderes diocesanos era gradualmente afirmada, mesmo se no vasto espaço da diocese a partilha com a influência das ordens militares era inevitável. Assim, quando a nova sé é construída, ela não se vira para o espaço fortificado, deixando-o antes para trás, num simbolismo que parece remeter para o passado a presença da guerra e dos seus protagonistas; não olha mesmo para o espaço herdeiro do Forum Romano progressivamente reutilizado, mas antes para os novos eixos que já, talvez, entreabertos nas décadas anteriores, ganham agora uma gradual e nova centralidade. Paróquias e arrabaldes ou os eixos de crescimento urbano.
A 6 de Fevereiro de 1286, D. Dinis em conjunto com muitos da “sua corte” concedia ao concelho de Évora, reunido no adro da igreja de Santo António, uma carta de confirmação, de reconhecimento de privilégios e de concessão de novos pedidos que, na altura, lhe foram dirigidos. Nesse documento estabelecido entre o monarca e o concelho, ambas as partes comprometiam-se a aceitar as condições herdadas do reinado anterior de Afonso III e a devolver a posse dos bens tal como cada um dos envolvidos tinha detido nas décadas anteriores.
Como testemunhas deste acto foi indicada uma longa lista de vizinhos e moradores da cidade, a par dos muitos que, provavelmente, tinham acompanhado D. Dinis na sua viagem até Évora. Entre estes últimos destacava-se o chanceler, curiosamente bispo de Évora na altura: D. Domingos Eanes Jardo, o seu mordomo, o porteiro, o sobrejuiz, além de um número significativo de ricos-homens, alguns familiares do próprio monarca e um número indiscriminado de membros da sua corte. No entanto, não é esta a lista que nos interessa, não obstante as indicações que nos fornece sobre a importância do documento assinado, mas sim a constituída pelos membros do concelho, mais eloquente sem dúvida em informações sobre a cidade na qual o acordo teve lugar.
Na verdade, é a partir da leitura e análise da lista constituída pelos representantes de Évora que maiores questões se colocam e também maiores reflexões são suscitadas. Mais de cinco dezenas de nomes são referidos nesse rol de testemunhas, embora as menções não esgotem o número de personagens presentes, dada a referência comum a parentes dos intervenientes mencionados. Nomes que apontam para diferentes grupos sociais, desde eclesiásticos, entre os quais se destacam alguns cónegos da Sé, a escudeiros e mercadores. No entanto, e ao contrário do que se poderia supor, a maior parte das referências não classificam os mencionados de acordo com as suas profissões ou ocupações, nem mesmo com um qualquer critério económico que permita organizar ou adivinhar a hierarquia subjacente. Curiosamente, é o espaço da sua habitação, da sua pertença que organiza uma parte substancial deste conjunto.
Assim, após a enumeração de algumas testemunhas, identificadas, na maior parte dos casos, por ligações familiares, muitos das restantes surgem ligadas a um determinado pólo da cidade, localizado no exterior da muralha romana. O primeiro critério subjacente aponta, pois, no sentido da existência de uma clivagem entre os que habitavam dentro e fora de portas, ou seja dentro e fora da muralha romana, a única à data existente e que separava e estabelecia a diferenciação entre o interior amuralhado e as zonas exteriores. O segundo critério aponta no sentido da especificação clara do arrabalde ao qual cada uma das testemunhas pertencia. Assim, enquanto no caso dos primeiros moradores referidos não é feita qualquer menção ao seu local de residência, indício possível mas não claro de uma morada localizada no interior das muralhas, os restantes são agrupados de acordo com os arrabaldes de onde provinham, no caso: o de Alconchel, o de S. Francisco, o da Porta de Moura e o de S. Mamede.
O retrato que este documento nos faculta é pois, e antes de mais, o de uma cidade que, nas últimas décadas de Duzentos, se espraia já pelas zonas limitrofes ao espaço amuralhado, definindo zonas preferenciais de concentração habitacional extra-muros, das quais as referidas no documento seriam talvez as mais importantes e com maior representatividade económica, a suficiente, pelo menos, para que os nomes de alguns dos seus moradores fossem referidos explicitamente na lista dos presentes à celebração deste documento. Mas, na verdade, outros pólos populacionais deveriam ainda dispersar-se pela zona externa em redor da muralha, se bem que, provavelmente, com bastante menos representatividade e importância do que os referidos. Um destes poderia ser, com certeza, o núcleo do arrabalde de Avis, outro o de Cogulos, embora aí os dados documentais sejam escassos e lacunares. De qualquer forma, é possível que a tendência acabasse por ser a inclusão destes pólos secundários nos grandes arrabaldes que a muralha cristã viria a conter no seu interior.
Alconchel, Porta de Moura, S. Francisco e S. Mamede, estes seriam, muito possivelmente, no final de Duzentos os mais importantes centros organizadores do povoamento extra muros e tanto a sua dispersão como a sua denominação reflectem alguns dos condicionalismos do seu crescimento. Atentemos antes de mais, nos termos que os designavam. Dois critérios básicos parecem estruturar as denominações destes quatro arrabaldes. No caso dos dois primeiros domina um critério de localização: eram as portas da muralha que definiam a identidade do arrabalde, ou seja era a visão do interior que dominava sobre o exterior, enquanto os dois restantes se definiam em função de duas instituições eclesiásticas: uma de implantação relativamente recente mas já suficientemente importante para ditar a organização do espaço em seu redor, ou seja o mosteiro de S. Francisco, outra de implantação mais antiga e que se ligava à igreja paroquial que fora de portas organizava o pólo habitacional que incluía a mouraria, mas também ruas que, a seguirmos a opinião de Ângela Beirante, seriam de“fixação precoce junto aos muros da cidade”
Contudo, não foi no adro desta igreja, mas sim junto à outra igreja paroquial igualmente localizada fora de muros que o documento que nos tem servido de guia foi assinado, ou seja no adro da igreja de Santo António. Com efeito e ao contrário do que a importância do texto e dos protagonistas envolvidos poderia fazer supor, não foi no adro da Sé ou nas suas imediações que o rei e os membros do concelho se reuniram
mas, antes, nas proximidades de uma igreja paroquial localizada fora do centro amuralhado, junto à praça que se ia delineando e cuja importância e centralidade crescia e se impunha gradualmente.
Na verdade e mais uma vez não sabemos em que data esta igreja, localizada não longe da porta de Alconchel, foi fundada. As primeiras referências documentais são relativamente tardias, tal como acontece com as restantes paróquias de Évora. S. Tiago, S. Pedro, S. Mamede e Santo António, igrejas que juntamente com a Sé partilhavam e retalhavam o espaço habitado tanto no interior como no exterior da muralha surgem mencionadas em datas relativamente tardias, embora uma leitura do espaço e da evolução da sua posse autorize pensar numa bem mais precoce fundação para alguns destes templos. Mas a existência paralela destas cinco paróquias na segunda metade de Duzentos, a escolha do adro de Santo António para a celebração de cerimónias como esta que o documento de 1286 retrata, a própria importância económica de uma igreja como a de S. Mamede que na Lista de Igrejas de 1320 apresenta o segundo maior rendimento das igrejas de Évora logo depois da Sé, são indícios claros da importância das igrejas dos arrabaldes e consequentemente destes mesmos arrabaldes no contexto de Évora dos séculos XIII e início do XIV. Importância que não deixa de colocar dúvidas sobre a cronologia da ocupação do expaço em redor da muralha e sobre a formação destes pólos habitacionais que articulavam o espaço em torno do limitado amuralhamento romano.
Desta forma, a escolha do adro de Santo António não foi com certeza aleatória. Claro que é bastante provável que este espaço se tenha também imposto pela sua dimensão e pela necessidade de albergar um tão elevado número de pessoas como aquele que é referido no final do documento, mas a sua escolha não deixa igualmente de ser sintomática dos novos focos de polarização urbana que se vão definindo.
Distante do centro episcopal, distante até do centro militar directamente ligado ao rei, o arrabalde de Alconchel, no qual a igreja de Santo António se instalava, estava plenamente inserido na malha urbana em crescimento e é com esta cidade que D. Dinis estabelece o acordo. Na verdade, é com o concelho, os cidadãos, os mercadores e os representantes dos diferentes grupos urbanos que o monarca se articula e não com a nobreza ou o clero aí sediado.
O documento de 1286 não se limita, pois, a ser um documento para a história das relações entre a cidade e a realeza. Ele constitui igualmente um reflexo da organização da Évora cristã das últimas décadas do século XIII. Um pólo que passados pouco mais de cem anos após a sua conquista e algumas décadas apenas após a pacificação plena da zona na qual se integrava, se dispersava por diferentes núcleos habitacionais, de importância desigual, mas que rodeavam uma parte significativa da muralha romana.
Tomados em conjunto, os arrabaldes mencionados neste documento do final de Duzentos apontam já os eixos prioritários de crescimento da cidade, os que virão a ser incluídos no interior da cerca nova que, alguns anos mais tarde, após a celebração deste documento, começaria a ser construída.
Com efeito, o crescimento dos séculos seguintes limitar-se-á, grosso modo, a preencher o espaço deixado em aberto entre os diferentes núcleos habitacionais que se difundem no decurso do século XIII em torno da muralha, mas a base da articulação da cidade medieval parece mais ou menos definida nesta centúria.
Da mesma forma, tanto o convento franciscano como o dominicano reconhecerão e confirmarão, através da sua implantação, na primeira metade de Duzentos, os eixos privilegiados do crescimento urbano, incentivando-o nas décadas seguintes. Assim, instalam-se junto de zonas de crescimento populacional, deficientemente integradas na rede paroquial de instalação relativamente recente, mas suficientemente próximos dos centros articuladores desse crescimento. S. Domingos procura a zona de Cógulos, enquanto S. Francisco se instala perto do arrabalde “cerca da Corredoira”, arrabalde que mais tarde tomará o nome do próprio mosteiro como já referimos. Afastados entre si e da muralha romana perfilam-se em função de dois eixos divergentes em relação à Porta de Alconchel.
No essencial a zona de crescimento da cidade está definida no decurso do século XIII, como atrás foi referido. As duas centúrias seguintes pouco mais farão do que ocupar as zonas intermédias deixadas em aberto, apropriarem-se dos vastos espaços não habitados que serão mantidos no interior da cerca nova. Com efeito, a cerca que as centúrias de Trezentos e de Quatrocentos verão tomar forma, incluirá largas zonas, tão largas que só passados muitos anos a população de Évora voltaria a ter necessidade e vontade de
ultrapassar o aro definido pela cerca medieval.


Hermínia Vilar (UE/CIDEHUS)
Hermenegildo Fernandes (FLUL/CHUL)

Sem comentários: