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segunda-feira, 18 de novembro de 2019

A doçaria conventual eborense

A famosa doçaria conventual alentejana tem em Évora um dos seus pontos altos, o que não é para admirar se dissermos que, coincidindo com o auge da produção da cana do açúcar na colónia do Brasil, existiam no século XVIII na cidade 22 conventos pertencentes a outras tantas ordens religiosas. Principalmente no Sul, estas tinham sido decisivas na lutas contra o invasor muçulmano, tendo os primeiros monarcas portugueses incentivado a criação de mosteiros, que funcionaram muitasvezes como pousada dos próprios e dos seu séquitos, ou das famílias mais nobres, quando em trânsito pelos territórios do Reino. Em recompensa da participação e apoio nos combates contra os infiéis concederamlhes os reis avultados domínios e formas de senhorio, que os tornaram poderosos e riquíssimos. Pela hospitalidade concedida e consoante o tempo de duração da estadia, doavam-lhes os senhores pingues esmolas, que contribuíam também para que ali nada faltasse em tempo algum. 

Este facto, aliado mais tarde à presença da Corte em Évora, no decurso do chamado período de ouro dos Descobrimentos, fez com que as congregações monásticas radicadas na cidade tivessem então triplicado. Os Conventos eram, pois, postos seguros de abrigo, respeitados, de excelente acomodação e bálsamo para o espírito, o paladar e o estômago. Paradoxalmente, os doces tinham sido trazidos para a Ibéria pelos árabes. Eles eram os principais cultivadores de açúcar e tinham-no transportado como elemento medicinal, benéfico para os incómodos do aparelho digestivo e respiratório. 

Era então equiparado às especiarias, igualmente de elevado preço e muito apreciado pela sua doçura. O seu consumo excessivo levou no entanto os médicos a declararem-no, em princípios do século XVII, como causador de graves alterações no sangue, apodrecimento dos dentes, origem indiscutível do escorbuto e não aconselhável a pessoas biliosas. Durante cerca de uma centúria desenvolveu-se acesa polémica entre os seus defensores e detractores, chegando-se à conclusão de que o seu uso redundava em benefício quando feito com moderação, repudiando-se porém os excessos. Entretanto os Portugueses chegaram ao Brasil e deram início, em força, à exploração da cana do açúcar. Com o desenvolvimento da produção, cujas técnicas de refinação iam conhecendo simultaneamente progressos substanciais, o açúcar começou a chegar a Portugal em grandes quantidades e a preço muito acessível.

A sua abundância reflectiu-se na produção doceira regional de que era elemento tradicional, juntamente com os ovos, a farinha, as amêndoas e o azeite. Os doces, normalmente confeccionados pelas senhoras, tornaram-se então presença assídua nos grandes banquetes senhoriais, como complemento das lautas refeições onde a carne predominava. Estas opíparas refeições eram bastas vezes confeccionadas no conventos femininos, que estavam pejados de freiras oriundas de famílias ricas que para ali eram remetidas por serem filhas bastardas ou por não conseguirem consorciar-se até determinada idade. Havia igualmente as que ali se refugiavam em função de romances desfeitos ou contrariados ou, mais raras, as que o faziam por devoção. 

De qualquer forma essa entrada era sempre acompanhada de magníficas doações. Na vida de clausura e de devoção exigia-se-lhes um comportamento exemplar (nem sempre cumprido), mas a frugalidade não constava da lista de obrigações. Para o interior dos mosteiros transportavam o tipo de alimentação que faziam como leigas, a ponto das receitas palacianas e senhoriais se terem incorporado nos hábitos da vida monacal. Ali sobejava-lhes o tempo para recriar, experimentar e inovar as múltiplas possibilidades que a abundância de açúcar veio proporcionar, criando novos doces. Para além dos grandes senhores, as freiras forneciam doçaria também a outras pessoas, desde que o seu estatuto ou o peso da sua bolsa lhes parecessem recomendáveis. 

Em separata das Actas do Congresso de História no IV Centenário do Seminário de Évora, que aborda o tema das Ordens Religiosas na Arquidiocese, o cónego António Fernando Marques identifica os 9 conventos femininos que no século XVIII existiam na cidade: S.Bento de Castris (um dos mais antigos do Reino, fundado em 1274 pela Ordem de Cister); Santa Mónica (ramo feminino da Ordem dos Agostinhos, 1380); Nª. Snrª. do Paraíso (Dominicanas, 1450); Santa Clara (Franciscanas, 1452); Santa Catarina de Sena (Dominicanas, 1547); Santa Helena do Monte Calvário (Franciscanas, 1565); Salvador (Franciscanas, 1602 e de todos o mais rico); S. João da Penitência (Maltesas?) e Convento Novo (Carmelitas Descalças, 1681). 

No seu livro intitulado “Doçaria Conventual do Alentejo”, Alfredo Saramago (1938-2008), o consagrado antropólogo e investigador das tradições gastronómicas portuguesas assinala, entre outras, as principais guloseimas que os tornaram procurados. O Convento do Paraíso seria então especialista no Bolo Real, no Toucinho do Céu, Lampreia de Ovos, no Pão de Ló e no Bolo Preto, enquanto o do Calvário ganhava encómios com o Pão de Rala com Azeitonas, o Bolo de Mel e o Porco de Chocolate com recheio. Em Santa Clara tinham fama o Doce de Escorcioneira (hoje desaparecido mas que há 50 anos ainda era uma especialidade de Évora), a Sopa Dourada, as Barriguinhas de Freira e os Queijinhos do Céu. 

Os Conventos de S. Bento e de Santa Mónica disputavam primazia no fabrico dos Manjares Branco e Real e da Encharcada, sendo que o segundo era ainda conhecido pela excelência do seu Morgado. Mas também o Convento do Salvador se fazia notar com a apresentação das Orelhas de Abade, dos Rebuçados de Ovos e dos Mimos de Freira. Em todos os outros existiam, da mesma forma, excelentes receitas. Com o advento do liberalismo as Ordens Religiosas foram extintas. Em relação aos conventos femininos aguardou-se pela morte das últimas religiosas para o encerramento das portas. Depois, ou foram afectos a outros fins ou foram demolidos, como os do Paraíso, S. João da Penitência ou do Salvador, de que resta a Torre do Salvador. 

Com o regresso posterior das Ordens a maioria veio a servir para prestação de assistência social a jovens desamparadas. Para prazer de todos, as belas receitas da doçaria não se extraviaram e ainda hoje fazem as venturas de qualquer palato. Na cidade não há restaurante que não possua doces conventuais eborenses na sua carta de sobremesas. A Rota dos Sabores Tradicionais, excelente iniciativa municipal centrada na promoção dos sabores da mesa alentejana, consagra-lhes o mês de Maio. Mas o melhor local para os saborear e adquirir é sem dúvida, a Pastelaria Conventual Pão de Rala, na Rua do Cicioso, onde Maria Ercília Zambujo é mestra na confecção do doce que dá o nome ao estabelecimento, bem como do Toucinho de Noz, das Encharcadas, das Barrigas de Freira e dos Morgados. 

ÉVORA MOSAICO nº 3 – Outubro, Novembro, Dezembro 09 | EDIÇÃO: CME/ Divisão de Assuntos Culturais/ Departamento de Comunicação e Relações Externas | DIRECTOR: 
José Ernesto d’Oliveira | PROJECTO GRÁFICO: Milideias, Évora | COLABORADORES: José Frota, Luís Ferreira, Teresa Molar e Maria Ludovina Grilo | FOTOGRAFIAS: Carlos Neves, 
Rosário Fernandes | IMPRESSÃO: Soctip – Sociedade Tipográfica S.A., Samora Correia | TIRAGEM: 5.000 exemplares | PERIODICIDADE: Trimestral | ISSN 1647-273X | Depósito Legal 
nº292450/09 | DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

O belo pão alentejano


Muitas vezes se ouve dizer, por parte de pessoas de outras regiões, que não há melhor pão que o alentejano. Verdade insofismável. Por essa razão, não falta quem, demandando Évora em passeio ou em negócio, procure saber onde pode encontrar o pão tradicional da nossa terra, para consumo próprio ou então para satisfazer o pedido, a encomenda de amigos ou conhecidos. 

A preferência vai habitualmente para o mais genuíno, aquele que é cozido em forno de lenha e cujo segredo se encontra na qualidade da farinha e na dose de fermento a utilizar. Uma introdução sobre a história do fabrico do pão torna-se necessária para entendermos que o segredo do pão alentejano reside tão só no máximo respeito pelas técnicas artesanais. É ponto assente entre os historiadores que o pão terá surgido associado à cultura do trigo, na zona da Mesopotâmia (Crescente Fértil), actual região do Iraque, há cerca de 6 milénios, como resultado do cozimento da farinha com água e sal grosso. Estava-se então no início da sedentarização do homem, que deu origem à chamada Revolução Agrícola no período Neolítico. Este primitivo tipo de pão é o pão ázimo, tradicional ente os judeus. O processo de fabricação do pão actual, obtido a partir da fermentação e levedação da massa original, foi obra dos egípcios, poucos anos depois e ao que parece fruto do acaso. 

Presume-se que, por incúria ou esquecimento, os antepassados núbios dos actuais padeiros deixaram passar algumas horas sem introduzir o preparado no forno. Acontece que a grande quantidade de microrganismos disseminados pelo ar, com especial relevância para os fungos de levedura, encontra nas massas de pão expostas as condições adequadas para se nutrir do amido da farinha. Desta forma, o amido desdobra-se em anidrido carbónico e álcool, pelo que a massa acaba por se tornar mais macia e fofa. Durante a cozedura, anidrido carbónico e álcool evolam-se mas o efeito que provocaram reflecte-se sobremaneira na porosidade, sabor e aroma do produto final. Manda a sabedoria que, antes da massa ir para o forno, já toda levedada, se retire um pouco, que servirá como óptimo fermento para a próxima cozedura. E assim consecutivamente. 

A esta massa que vai sendo retirada e ciclicamente introduzida se dá o nome da massa velha. O resto do segredo está no tender e na temperatura do forno. Bem fundamental da sua alimentação, o homem da planície usa o pão como assento do pedaço de toucinho, do naco de queijo, ou da lasca de febra e/ou enquanto substância molhada no ensopado, nas tomatadas, nas migas, na açorda, no gaspacho, modo antigo mas genial de fazer avultar as refeições. Excepcional fixador de cheiros, o pão da região guarda, nesses pratos, a riqueza das ervas aromáticas (alhos, coentros, salsa, poejos e outros). 

Natural é pois que o alentejano o fabrique desde sempre através do método da fermentação lenta. A sua confecção não envolve qualquer segredo mágico de alquimista , como já se aludiu. Exige, porém, uma preparação requintada, que começa na escolha dos próprios grãos de trigo, pela sensibilidade e destreza especial das mãos que o amassam, e passa pelo conhecimento do tempo para borrifar a massa com água, pelo reconhecimento rigoroso do ponto de levedura e pela habilidade no seu tender. Assim se produz o belo pão alentejano, também conhecido por Pão de Cabeça No concelho de Évora fabrica-se com grande qualidade em Guadalupe, na Torre de Coelheiros, Vendinha (S. Vicente do Pigeiro) e na própria cidade, na zona da Urbanização do Moinho. Mas pode-se encontrá-lo também à venda em diversos mini-mercados ou no “Zé do Bacalhau”, no Mercado Municipal.


Receita do pão alentejano
Farinha de trigo: 2500 gramas; Sal grosso: 30 gramas; Fermento de massa: 125 gramas; Água: 1,5 litros.

Em alguidar à dimensão do preparo começa por se dissolver no litro e meio de água, previamente amornada, o fermento e o sal. A pouco e pouco vai-se misturando a farinha que se deve amassar bastante bem para que fique totalmente ensopada. Por isso, sempre que a mistura borbulhe deve a mesma ser borrifada com mais água morna A massa entretanto obtida é posta em descanso a levedar ou a “fintar”, cobrindo-se o alguidar com um pano. Quando crescer 2 a 3 centímetros é chegada altura de a tender, ou seja de a estender com um rolo e dividi-la, neste caso, por 3 pães, tendo em atenção as quantidades de ingredientes utilizados. Os pães vão permanecer a levedar durante mais cerca de meia hora. Depois irão cozer para o forno que deve estar bem quente, devendo esta operação derradeira prolongar-se por cerca de 60 minutos.

Évora Mosaico 
José Frota


quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O Mobiliário Pintado Alentejano

O mobiliário pintado alentejano é um estilo de mobiliário de características populares e regionais, que se enquadra no artesanato tradicional e envolve três actividades profissionais: a carpintaria, o empalhamento e a pintura.
Este mobiliário é um produto da cultura alentejana, relacionado com as formas e as funções tradicionais (usos e costumes). Sofreu alterações ao longo dos anos, consoante a realidade cultural do tempo em que era produzido e nos nossos dias é um testemunho real de permanências e inovações culturais. Tem uma componente marcadamente pessoal (o gesto), e reflecte uma atitude de criação colectiva. É esta característica que, para além da natureza dos materiais e das técnicas utilizadas, lhe confere uma identidade própria e nos leva a considerá-lo como uma etnotecnologia.
O seu sistema técnico de produção é composto por três processos operativos: o tradicional, de origem antiga, complexo, com um tempo de realização longo e executado manualmente; o contemporâneo, que recorre a tecnologias mecanizadas, resultando numa redução de esforço e tempo necessários à execução de determinadas tarefas e no recurso a produtos industriais; o terceiro, é uma simbiose dos dois anteriores.
Não conhecemos elementos que comprovem a sua criação ou a menção do(s) seu(s) criador(es) e respectiva datação. No entanto, há uma correspondência entre os elementos formais e funcionais das peças, sobretudo, das mais antigas (Museu de Estremoz, finais do século XVIII, e Solar dos Condes de Portalegre, em Évora, princípio do século XIX) e as do mobiliário nacional. Esta comparação permitiu identificar que o corte ou talhe da madeira e a pintura decorativa no mobiliário pintado alentejano são uma reinterpretação popular de elementos de dois estilos portugueses – D. José e D. Maria. Esta reinterpretação não deve ter surgido repentinamente; é possível que tenha sido desenvolvida por algum pintor ou carpinteiro mais atrevido, inspirado nos modelos de móveis eruditos, que executou e difundiu os seus próprios modelos.
É a partir de meados do século XIX que encontramos menções escritas às cadeiras de Évora ou cadeiras alentejanas e muito raramente referências a outras peças deste estilo de mobiliário. Estas referências conduzem-nos a considerar que a sua criação deve ter ocorrido em Évora e terá sido, posteriormente, difundida para outras localidades alentejanas, através, por exemplo, das feiras tradicionais. Além da sua função utilitária e decorativa, estas peças tinham também uma função de prestígio social.
O segundo momento do seu processo evolutivo reporta-se à acção desenvolvida pelo Estado Novo, que definiu estilos regionais de mobiliário. Defendia a animação e a orientação da indústria decorativa regional, pela integração em regras de arte e promoveu a decoração e o mobilar de instituições do Estado, iniciando-se pelas Casas do Povo, com a utilização do estritamente tradicional em cada região.
Porém, como resultado do desenvolvimento industrial, verificou-se em Portugal, na década de sessenta do século XX, uma progressiva decadência do artesanato, com a substituição dos seus produtos pelos de origem industrial e a diminuição, adulteração, e até desaparecimento, de produtos e formas produtivas próprias. É na década de oitenta que se assiste ao ressurgimento da actividade artesanal e à redescoberta do seu valor sócio-económico e cultural, levando à criação de riqueza e à resolução de problemas de emprego, mediante a absorção e fixação de mão-de-obra, sobretudo, de jovens, mulheres e desempregados. As artes e os ofícios cresceram no quadro de programas de emprego e formação profissional.
Em Évora, um dos grandes divulgadores da pintura alentejana foi o Mestre Joaquim António dos Santos, “O Belizanda”. Nascido na freguesia de Santo Antão, em Évora, a 15 de Março de 1890, este artesão cedo aprendeu o ofício, com o Mestre João da Feira, tendo começado a trabalhar com apenas doze anos.
Numa entrevista que deu por volta de 1980, o Mestre Belizanda afirmava que os temas destas mobílias eram muito antigos, tendo sido “deixados pelos mouros”. Para decorar os móveis ou qualquer outro objecto dava um aparelho, com tinta de óleo, quando este secava, aplicava o esmalte de base: creme, azul, branco, encarnado, verde ou preto e depois de este secar é que começava a decoração. Fabricava as suas próprias tintas, misturando óleo de linhaça e secante, com pigmentos comprados em Lisboa. E dizia: “Pinto a tacto, a meu gosto. Olho para a peça e faço cá a meu modo. Dá bom dinheiro, há pouco quem faça e mais a mais perfeito.”
Gostava muito de pintar as cabeceiras das camas de capela, pois tinha espaço para fazer belos ramos de flores coloridas. A mão de mestre manejava dezenas de painéis e as tintas de variadas cores, sem régua ou compasso, desenhando simetricamente as suas florinhas e os belos ramos de rosas, numa combinação de cores.
Queremos com este pequeno texto relembrar o mobiliário pintado alentejano e prestar uma singela homenagem a todos os artesãos que ao longo de muitos anos a ele se dedicaram.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O Dia da Espiga

O Dia da Espiga, coincidente com a Quinta-feira da Ascensão, é uma data móvel que segue o calendário litúrgico cristão e que este ano é celebrada a 21 de Maio.
Mas, se actualmente poucas são as pessoas que ainda vão ao campo nessa quinta-feira, abandonando as suas obrigações, para apanhar a espiga, ou que se deslocam às igrejas para participar nos preceitos religiosos próprios da data, tempos houve em que, de norte a sul do país, esta foi uma data faustosa, das mais festivas do ano, repleta de cerimónias sagradas e profanas, que em muitas zonas implicava mesmo a paragem laboral. A antiga expressão “no Dia da Ascensão nem os passarinhos bolem nos ninhos” deriva dessa tradição.
A origem gaudiosa deste dia é, contudo, muito anterior à era cristã. Este dia é um herdeiro directo de rituais gentios, realizados durante séculos, por todo o mundo mediterrâneo, em que grandiosos festivais, de intensos cantares e danças, celebravam a Primavera e consagravam a natureza.
Para os povos arcaicos, esta data, tal como todos os momentos de transição, era mágica e de sublime importância. Nela se exortava o eclodir da vida vegetal e animal, após a letargia dos meses frios, e a esperança nas novas colheitas.
A Igreja de Roma, à semelhança do que fez com outras festas ancestrais pagãs, cristianiza depois a data e esta atravessa os tempos com uma dupla acepção: como Quinta-feira de Ascensão, para os cristãos, assinalando, como o nome indica, a ascensão de Jesus ao Céu, ao fim de 40 dias; e como Dia da Espiga, ou Quinta-feira da Espiga, esta traduzindo aspectos e crenças não religiosos, mas exclusivos da esfera agrícola e familiar.
O Dia da Espiga é então o dia em que as pessoas vão ao campo apanhar a espiga, a qual não é apenas um viçoso ramo de várias plantas - cuja composição, número e significado de cada uma, varia de região para região –, guardado durante um ano, mas é também um poderoso e multifacetado amuleto, que é pendurado, por norma, na parede da cozinha ou da sala, para trazer a abundância, a alegria, a saúde e a sorte. Em muitas terras, quando faz trovoada, por exemplo, arde-se à lareira um dos pés do ramo da espiga para afastar a tormenta.
Não obstante as variações locais, de um modo geral, o ramo de espiga é composto por pés de trigo e de outros cereais, como centeio, cevada ou aveia, de oliveira, videira, papoilas, malmequeres ou outras flores campestres. E a simbologia de cada planta, comumente aceite, é a seguinte: o trigo representa o pão; o malmequer o ouro e a prata; a papoila o amor e vida; a oliveira o azeite e a paz; a videira o vinho e a alegria; e o alecrim a saúde e a força.
Além destas associações basilares ao pão e ao azeite, a espiga surge também conotada com o leite, com as proibições do trabalho e ainda com o poder da Hora, isto é, com o período de tempo que decorre entre o meio-dia e a uma hora da tarde, tomando mesmo, nalguns sítios do país a designação de Dia da Hora. Nas localidades em que assim é entendida esta quinta-feira, acredita-se que neste período do dia se manifestam os mais sagrados e encantatórios poderes da data e nas igrejas realiza-se um serviço religioso de Adoração, após o qual toca o sino. Diz a voz popular que nessa hora “as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha, o pão não leveda e até as folhas se cruzam” . Nalgumas povoações era também do meio-dia à uma que se colhia a espiga.
Noutras regiões ainda, esta data é dedicada ao cerimonial do leite. Na aldeia da Esperança, no concelho de Arronches, este é aliás o “Dia do Leite” e os produtores de queijo ordenham o seu gado e oferecem o leite a quem o quiser. Também em Guimarães, e em muitas freguesias do concelho de Pinhel, o leite ordenhado neste dia é oferecido ao pároco. Em Santa Eulália, no concelho de Elvas, esse leite é dado aos pobres, acreditando-se assim que a sarna não atingirá as cabras.
Nas zonas onde esta data é associada à abstenção laboral, cessam-se muitas actividades como a cozedura do pão ou a realização de negócios. Na Lousada, em Penafiel, não se cose nem se remenda e há quem deixe comida feita de véspera para não ter de cozinhar neste dia.
No que diz respeito ao sul do país, e sobretudo na actualidade, a maioria das tradições do Dia de Espiga resume-se à apanha do ramo da espiga, ao qual, em muitos sítios, se adiciona também uma fatia de pão, para que durante todo o ano não falte este alimento em casa.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Tradições: A Matança do Porco

A matança do porco é uma prática de há muito enraizada nos hábitos do povo alentejano. Nasceu, segundo reza a tradição, entre os rurais que, labutando de sol a sol nas terras dos senhores de pendão e caldeira, tinham necessidades alimentares que as parcas jornas não conseguiam suprir. O pão, as azeitonas ou de onde em onde, uma peça de caça miúda surripiada, com passagem directa ao fogo ou à panela, eram aconchego de pouca substância, para quem alombava em tão rudes tarefas.
A comida dos ganhões, nome por que eram conhecidos os trabalhadores do campo no Alentejo, compunha-se normalmente das rotineiras e pouco substanciais sopas de cebola, hortelã ou de qualquer outra erva aromática, em que o distrito ou o concelho de Évora passam por ser os mais férteis do país. Em dias de festa o patrão lá abria mão de um galináceo, de alguns nacos de carne de porco ou, até, de um ou outro enchido, que durante alguns dias forravam o estômago dos pobres.
Curiosamente, até meados do século XIX os suínos tinham sido considerados pelos grandes terratenentes como animais sujos e imundos, parentes abastardados dos javalis e por isso indignos de comparecerem às mesas requintadas. Contudo, a sua carne, muito saborosa e suculenta, foi-se impondo ao paladar mais exigente, ao mesmo tempo que o seu valor alimentício ia paulatinamente ganhando estatuto entre as gentes de maiores posses. E se, entre estas, só as partes mais nobres eram consumidas, nas vilas e aldeias vingava a ideia de que tudo no porco podia ser aproveitado.
Assim se foi desenvolvendo o hábito, entre os menos bafejados pela sorte, de se adquirir anualmente, e ainda que com grande sacrifício, um pequeno bácoro para ser abatido à entrada do Inverno, na altura dos grandes frios. A sua criação não envolvia grandes gastos, dado que as bolotas caíam quotidianamente e em abundância dos sobreiros e a erva podia ser livremente pastada nos montados de sobro e azinho. E o seu abate contribuía para equilibrar o orçamento familiar e garantia o sustento por muito tempo, até à próxima matança, se possível, fazendo-se uma gestão controlada da carne.
Costume secular, a matança sempre foi feita em tempo certo, por alturas dos grandes frios, nos meses de Janeiro e Fevereiro. Duas razões concorriam para isso: este era o período em que as actividades agrícolas se reduziam ao mínimo e em que, por sua vez, as baixas temperaturas ajudavam à conservação dos produtos. A operação de abate, para além de não ser fácil, envolve um ritual para o qual se convoca a presença de familiares e amigos. Normalmente inicia-se a um sábado. Durante um fim-de-semana, todos são poucos para cumprir a função de tudo aproveitar.
Cabe a um matador experimentado desferir o golpe fatal. Entretanto, cinco ou seis pessoas seguram-no pelas pernas e pelas orelhas. Os guinchos desesperados e sofridos do suíno, acompanhados de espasmos violentos, dão bem conta de uma agonia relativamente prolongada enquanto o sangue jorra para um alguidar. Os mais sensíveis estão afastados e só por ali aparecem mais tarde. Em seguida o animal é chamuscado e esventrado. Nesta fase alguns dos convivas já se aproximam para observar e confirmar a justeza do provérbio popular: «Se queres ver o teu corpo abre um porco». Retiradas as tripas e lavadas pelas mulheres, as mesmas são preparadas para as operações seguintes.
É então tempo de parar o trabalho e começar a festa. Ao almoço já se comem sopas de sarapatel, febras e torresmos fritos regados com bom vinho da região. Com os estômagos confortados e ao calor da fogueira armada desde bem cedo e reavivada sempre que o lume parece esmorecer, canta-se à alentejana até bem tarde.
No outro dia, a alvorada marca a necessidade do regresso à lide, que vai começar pelo desmancho do resto da carcaça. Segue-se o lento e cuidado ensacamento das tripas. Consoante a preparação a que são sujeitas, assim fazem os tão famosos enchidos da nossa terra: linguiças, chouriços, cacholeiras, farinheiras, morcelas e salpicões.

Outrora, a matança do porco estendia-se por várias casas e locais, num espírito comunitário e solidário. Quem tinha ajudado recebia posteriormente ajuda. Até meados de Março, conforme a extensão do Inverno, havia sempre festa, na certeza da chegada de mais um ano em que a barriga não padeceria privações. Mas, a pouco a pouco, a desertificação do mundo rural, o abandono dos campos e a adopção de novas técnicas agrícolas foram modificando a vida, mesmo a dos que continuam a querer resistir à perda dos velhos hábitos.
Actualmente, por via da imposição rígida de normas da União Europeia, a pretexto de homogeneizar comportamentos e globalizar princípios de saúde pública, a matança do porco, na sua versão tradicional, tem sido largamente combatida. No mínimo exige-se a presença de um veterinário que se faz pagar a peso de ouro. Outras regras sanitárias, como o abate em matadouro, desincentivam também a sua prática. Determinados imperativos de natureza ética têm ganho também terreno, condenando costumes ancestrais que os urbanos acoimam hoje de bárbaros.
Apesar de tudo, esta continua a fazer-se de forma clandestina em vilas, aldeias e principalmente em lugares ou montes isolados na vasta planície alentejana, onde todos se conhecem e a presença das autoridades não alcança. E mesmo que, à distância, algum eco lhes chegue dessas actividades, o que fazem é ignorá-lo para não cair no desagrado dos poucos que por ali ainda habitam.
Este ano, a Câmara Municipal de Évora achou por bem fazer a recriação deste hábito tradicional na Praça do Giraldo, com a óbvia exclusão da parte não permitida por lei, no intuito de fazer descer a ruralidade à cidade. Ali instalou dois carros de canudo e levantou um lume de chão onde as febras foram assadas. Sopa dos ganhões enriquecida com a presença da carne de porco e enchidos cozidos também foi colocado à disposição de quem a quisesse saborear. Grupos de cantares acompanharam a refeição, onde a pinga de estalo se fez notar. Turistas nacionais e estrangeiros, surpreendidos com este evento inédito, teceram loas à iniciativa que lhes permitiu conhecer melhor a história e os segredos de vida do povo alentejano.

Texto: José Frota