Em plena Praça do Giraldo e debaixo das arcadas, no seu ponto mais central, fica situada a Papelaria Livraria Nazareth. Com mais de cem anos de existência, é a mais prestigiada livraria ao Sul do Tejo e foi ponto de encontro obrigatório de muitas gerações de intelectuais locais ou que passaram pelo Alentejo, mormente no período entre 1920 e 1970.
Tanto quanto parece, é a mais antiga loja da cidade. Embora já sem o fulgor de outrora, conserva um estatuto ímpar no comércio cultural eborense. No edifício onde a loja está instalada funcionou durante a primeira metade do século XIX o Seminário de Évora e, logo depois, uma ordem monástica feminina. Em 1890 Eduardo de Sousa, um conhecido comerciante da cidade, alugou o piso térreo para nele abrir uma papelaria e livraria. Três anos depois, António da Silva Nazareth entra para empregado e, em 1897, passa a sócio com uma pequena quota.
Mas só em 1906 se tornou seu proprietário e deu à loja a sua actual designação. Eduardo de Sousa vendeu- lhe a sua parte na firma para saldar dívidas de jogo contraídas na Sociedade Harmonia Eborense. A loja alargou então o seu leque de ofertas, passando a vender chás, lotarias, perfumes e brinquedos, “kodaks” e postais, executando ainda trabalhos tipográficos e de encadernação. Assim reza um anúncio publicado nos anos 20 do século passado que o seu actual sócio-gerente Joaquim Manuel Nazareth - conhecido demógrafo e professor catedrático jubilado do Instituto Superior de Estatística e Gestão de Informação da Universidade Nova de Lisboa - guarda «religiosamente». Exactamente por esses anos o poeta João Vasconcelos e Sá, aludindo à diversidade comercial do estabelecimento, compunha a seguinte letra para uma revista teatral eborense que conheceu grande êxito: «Dentro dos arcos da Praça/a loja do Nazareth/tem selos, correntes, carteiras e pentes/impressos, rosários, botões, calendários/ compassos, carimbos, romances, cachimbos/kodaques, tabaco, postais e rapé».
Mas a paixão de António da Silva Nazareth eram os livros e logo que pôde tratou de assegurar um espaço mais reservado na loja para acolher os clientes que gostavam de se demorar escolhendo com cuidado e critério as obras que pretendiam. O local acabou mesmo por se tornar um centro de cavaqueio dos intelectuais do burgo ou vivendo nas proximidades. Florbela Espanca e José Rodrigues Miguéis eram, então, dois dos que ali passavam horas a fio. Entusiasmado pelo sucesso obtido, o proprietário tentou incutir nos irmãos, todos mais novos, a paixão pelo comércio de papelaria e livraria, ajudando-os a criar estabelecimentos do sector em Portalegre, Beja, Faro e Santarém. Há dez anos as duas últimas ainda existiam, mas só a de Santarém permanecia ligada à família - esclareceu na ocasião Joaquim Nazareth. Em 1950 a livraria ficou separada do restante estabelecimento pela introdução de três degraus que a colocavam num patamar ligeiramente superior.
A casa viveu então os seus maiores momentos de glória. Vergílio Ferreira (ali fotografado várias vezes) e o grupo da Soeira, composto pelo médico Alberto Silva e pelos pintores Saul Dias, António Charrua e Henrique Ruivo, eram os frequentadores mais assíduos. De modo menos frequente, também franqueavam a porta e se entretinham a folhear as últimas novidades personagens como Álvaro Lapa, Fernando Namora, Maria Lamas, José Régio e Fernando Namora. Cerca de dez anos depois António Nazareth, avô de Joaquim Manuel, aproveitou o facto de a Vacuum Oil Company ter abandonado o primeiro andar do prédio para comprar o edifício. Para lá passou a livraria, garantindo uma maior privacidade e um espaço mais amplo para os frequentadores se movimentarem mais à vontade.
Mas a debandada para outras paragens, principalmente para Lisboa, de muitos dos seus principais animadores fez-se sentir em demasia e a livraria deixou de ser a tertúlia que até aí tinha sido. Além de ter aberto o caminho aos irmãos no mercado dos livros e dos papéis, o “velho” Nazareth sempre pretendeu que os responsáveis da livraria se tornassem bons profissionais do ramo. Quase todos se vieram a estabelecer depois por conta própria. Assim aconteceu com os responsáveis das papelarias- livrarias Carapinha e Gaspar, já há muito extintas, e da papelaria-livraria José António, este por ventura o melhor de quantos por lá passaram. As suas saídas, porém, não abalaram muito o funcionamento da Nazareth, que sempre acabou por se restabelecer rapidamente. Só o 25 de Abril lhe proporcionou alguns embaraços, quando foi apelidada, vá lá saber-se porquê, de “livraria dos fascistas”.
Uma designação surgida das bandas comunistas, que bem perto implantaram uma delegação da Editorial Caminho (Livraria Bento de Jesus Caraça), a qual acabou por encerrar as suas portas após oito anos de actividade. Entretanto, António da Silva Nazareth, inveterado tabagista e que todos os dias - fosse Inverno ou Verão - se apresentava vestido de colete e respectivo relógio de bolso, falecia em 1978 com 98 anos de idade.
Sucedeu lhe o filho, que, juntamente com José Manuel Cabeça, um empregado-associado, apostou mais no sector da papelaria e do material de escritório, desguarnecendo um tanto a livraria. A morte prematura do filho do fundador abriu uma crise profunda na empresa. José Manuel Cabeça saiu e fundou uma papelaria própria, tal como o anterior responsável pela livraria. Foram os netos - Joaquim Manuel Nazareth e a irmã - que vieram a herdar o estabelecimento.
Sob a nova gerência a livraria ganhou novo fôlego, entregue aos cuidados de Maria José Bastias, que alia a proficiência na matéria à afabilidade no trato. É certo que nos últimos anos surgiram novos estabelecimentos no sector livreiro, sem no entanto adregarem retirar estatuto à velha “Nazareth”. Já o mesmo não se poderá dizer em relação à área da papelaria e dos artigos de escritório, que perdeu dinamismo perante a agressividade e modernidade de alguma concorrência.
Os seus actuais proprietários não precisam da loja para viver, pois tiveram outras profissões que lhes asseguraram uma reforma sem sobressaltos, mas vão mantê-la na sua posse, não se dispondo a vendê-la, ainda que, pela sua localização privilegiada, o espaço seja alvo de cobiças várias. Para eles a loja é um símbolo da vida cultural eborense e uma excelente herança a perpetuar a memória do seu avô.
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