terça-feira, 20 de agosto de 2013

O mural desaparecido



Estava-se em pleno PREC (Processo Revolucionário em Curso). No Alentejo, a Reforma Agrária era um autêntico braseiro político e social, pois os proprietários de um milhão e duzentos e mil hectares tinham sido compulsivamente afastados das suas terras e substituídos pelas Unidades Colectivas de Produção, constituídas por grupos de trabalhadores organizados que as haviam ocupado com a conivência do MFA (Movimento das Forças Armadas) e o apoio do Partido Comunista Português. A tensão entre lavradores e antigos assalariados atingira o rubro, ameaçando transformar a região num enorme campo de batalha em que o sangue correria a rodos, visto que, se de um lado as forças militares e para militares possuíam armas legais, os latifundiários e rendeiros também as tinham, ainda que obtidas de forma clandestina. O confronto por diversas vezes esteve iminente, tal era o ódio entre ambas as partes em litígio. Nessa altura Évora era vista como a capital da Reforma Agrária. 

Os movimentos ditos progressistas e os intelectuais apoiavam calorosamente a mudança ocorrida nos campos alentejanos, emprestavam-lhe toda a sua solidariedade e criatividade e reforçavam as consignas emanadas do poder revolucionário. Foi assim que durante o chamado Verão Quente, mais concretamente nos dias 5 (sábado) e 6 de Julho (domingo), a instâncias da Comissão Dinamizadora Central do MFA, uma brigada de artistas plásticos deslocou-se à cidade para criar, num muro com 40 metros de comprimento, uma grande composição pictórica que celebrasse os momentos históricos de rutura com o antigo regime, nomeadamente a conquista da Reforma Agrária. 

O local escolhido havia sido uma extensa parede, adstrita ao Palácio de Cadaval e situada junto à Porta do Moinho de Vento, à entrada do Largo dos Colegiais. Durante aqueles dias trabalharam, num ritmo frenético e pluralidade de estilos, os pintores e desenhadores Vespeira, Gracinda Candeias, Rogério de Amaral, Rodrigo de Freitas, Sá Nogueira, Júlio Pereira, Sérgio Pombeiro, Teresa Magalhães, Henrique Manuel, David Evans, João Moniz Pereira, Silvia Chicó e Henrique Ruivo. 

A obra consagrava de fato maioritariamente a Reforma Agrária, quer através das imagens como por meio da inserção da máxima socialista “A terra a quem a trabalha”, mas referia também de forma mais breve e por vezes metafórica a chegada da liberdade ao Alentejo, as nacionalizações, a aliança Povo-MFA e o nascimento da Guiné-Bissau. Depois, com a realização das primeiras eleições e a instauração da democracia parlamentar e o consequente afastamento do PCP, a que sucedeu o paulatino regresso aos quartéis dos militares, a Reforma Agrária foi-se esboroando progressivamente. 

Em 1979 começa a devolução das terras que haviam sido nacionalizadas aos antigos proprietários. Os ocupantes resistirão, mas a GNR virá a ter um papel determinante na imposição das decisões governamentais. Será Cavaco Silva que, em 1995, com a publicação da Lei de Bases do Desenvolvimento Rural, vibrará o golpe de misericórdia na Reforma Agrária ao decidir-se pela privatização das terras. 

Na parede junto ao Palácio de Cadaval, o painel continuou indiferente aos ventos da história mas exposto à fúria dos elementos, que foram contribuindo para a sua acelerada deterioração, que já praticamente o tornava pouco menos que impercetível. Em 2004, aquando dos festejos do 30º. Aniversário do 25 de Abril, a Câmara Municipal tentou recuperá-lo, mas os peritos consultados para o efeito foram de opinião que o seu restauro era impossível, dada a degradação do reboco do muro. 

Em face disto, a edilidade optou por mandar executar uma placa interpretativa do mural que reproduzia a pintura como ela era em 1975, de acordo com a fotografia acima inserta e única que abrangia a totalidade da obra, e na qual figuravam os nomes dos artistas que haviam participado na sua feitura. Logo nos tempos imediatos desconhecidos roubaram a placa identificativa. 

Hoje, da existência do mural apenas restam alguns vestígios praticamente indecifráveis, com o muro carcomido pela usura do tempo e pelas ervas e líquenes que o encobrem. E foi pena que não lhe tivessem acudido a tempo. Independentemente das convicções políticas e ideológicas de cada um, o mural era valioso do ponto de vista artístico e cultural e marcava o testemunho de uma época marcante na história da cidade.

Autor: José Frota
Évora Mosaico

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