domingo, 11 de fevereiro de 2018

Palácio da Inquisição


Muitos e importantes restos do Tribunal do Santo Ofício de Évora subsistem na actualidade. O corpo mais antigo, compreendendo as faces Sul-Ocidental (as Casas Pintadas do almirante D. Vasco da Gama), o mais curioso histórica e arqueologicamente, é do período manuelino. No edifício se matrimoniou, segundo se interpretam das crónicas coevas, o glorioso descobridor do Caminho Marítimo para a índia, com D. Catarina de Ataíde e lhe nasceram alguns dos filhos, figuras eminentes da epopeia dos descobrimentos, como D. Paulo da Gama, capitão de Malaca, D. Estevão, governador do Estado da Índia e D. Cristovão da Gama, celebrizado chefe da expedição da Abissínia. Aqui se efectuou, em 7 de Novembro de 1519, na presença do bacharel João Álvares, ouvidor do duque D. Jaime de Bragança, o escambo da tença de 400 000 reais outorgada por D. Manuel, pelas vilas de Frades e da Vidigueira, esta origem do título senhorial, que o mesmo monarca, em 17 de Dezembro de 1520 lhe concedeu. De Évora partiu para o vice-reinado da Índia, após menagem prestada a D. João III, no paço real, a 28 de Fevereiro de 1524. Desconhecemos a data exacta de alienação das nobres casas: em 1591 era habitada por D. Francisco da Gama, 4.° Conde da Vidigueira e futuro vice-rei da índia. Nos alvores do 2.° terço do séc. XVII, quando das vultuosas obras de ampliação da sede do Tribunal do Santo Ofício, determinadas pelos inquisidores D. Miguel de Portugal, bispo de Lamego, D. António da Silveira e D. Manuel de Saldanha, bispo de Coimbra e concebidas segundo planos feitos por Mateus do Couto, arquitecto-mor das Inquisições do Reino, em 1635, a nobre residência foi integrada nesta corporação secular e adaptada a moradia, essencialmente, dos inquisidores-mores e seus subalternos. O Tribunal de Évora, o primeiro de Portugal, foi criado em 22 de Outubro de 1536, depois da leitura do Breve Apostólico do Papa Paulo III, datado de 23 de Maio do mesmo ano, perante a corte de D. João III reunida expressamente para o efeito no paço real de S. Francisco. Foram seus primeiros inquisidores geral e locais o bispo de Ceuta, D. Diogo da Silva, D. Gonçalo Pinheiro, bispo de Safim, D. João de Melo e Castro e D. Rodrigo Lopes de Carvalho. 

O bloco original, de proporções reduzidas, tinha fachadas para os terreiros do Marquês e da Sé e para uma rua pública que o separava do paço dos Gamas, compreendendo um grupo de casario que el-rei adquiriu aos herdeiros do coudel-mor D. Francisco da Silveira; contíguos viviam o cavaleiro Tristão da Cunha, licenciado João Dias, Pero Borges e Lopo Pires. D. Henrique, cardeal-infante, arcebispo de Évora e Inquisidor Geral ampliou muito o edifício e absorveu quase todas as casas de enfiteuse particular que o rodeavam, comprando, de suas rendas, a moradia de Rui Borges no ano de 1568 e introduziu-lhe melhorias de grande vulto, ligando os cárceres à parede ocidental dos Açougues, por licença municipal. Em 1622 o inquisidor João Álvares Brandão fez-lhe importantes reformas culminadas com a empreitada de 1635, de responsabilidade do mencionado arquitecto Mateus do Couto, aquela que, na sua essência fundamental, imprimiu ao paço a forma que chegou ao período do Liberalismo, quando da supressão imposta pela Constituição de 1820 e publicada no Decreto de 31 de Março do ano seguinte. Segundo as fontes tradicionais, o Tribunal de Évora prendeu ou condenou em variadíssimas penas nos 277 anos da sua existência 22 000 pessoas de ambos os sexos, que desfilaram pelos 140 Autos da Fé celebrados na Sala das Audiências, nas salas capitulares dos conventos de S. Francisco e de S. João Evangelista ou morreram nas queimadas do Largo da Sé, Praça do Geraldo e Rossio de S. Brás. 

O vastíssimo bloco, adaptado a necessidades urbanas depois de 1820, foi amputado de valiosos elementos arqueológicos e artísticos; em 1845 era do património da Duquesa de Palmela; no princípio do século actual serviu de pousada do lavrador Diogo Maldonado Façanha e, de 1928 a 1949 muito transformado, nele funcionou o Hotel Alentejano. Ao presente pertence ao eng. Vasco Maria Eugénio de Almeida, que no corpo sul-ocidente, depois de restauro e adaptação convenientes instalou a partir de Dezembro de 1963 a residência da Companhia de Jesus e o Instituto de Estudos Superiores de Évora, que teve seus fundamentos com abertura de aulas públicas em 26-10-1964, na ensinança universitária das secções de Ciências Sociais e Ciências Económicas. Irregular nos volumes e fachadas exteriores, que deitam para os Largos do Marquês de Marialva, Conde de Vila Flor, Rua de Vasco da Gama e Travessa das Casas Pintadas, os pavilhões, de empenas, descaracterizadas e assimétricas, com suas coberturas de quatro águas e pobres janelas rectangulares, funcionais, não oferecem qualquer classificação arquitectónica (1). O corpo central, longo e estreito, de alvenaria, caiado de branco, robustecido nos ângulos do ocidente por cunhais de grosso aparelho granítico, deita para a entrada principal, defendida por pátio de altos muros, onde se concentravam as corporações religiosas nos dias de Autos da Fé. Abre-se nele o portado quinhentista, marmóreo, que se compõe de simples vergas e frontão de abas ornado com volutas de enrolamento e urnas piriformes de reminiscências clássicas, mas peça já do estilo barroco, atribuível ao governo do Cardeal-infante D. Henrique, como inquisidor geral do reino, c.ª de 1560. Sobrepujante, fica o armorial ovalado, do Santo Ofício, também de calcário branco, que longos anos se guardou no Museu Regional e ultimamente se repôs no lugar a instâncias da Comissão Municipal de Turismo. 

O pátio, de configuração quadrangular, outrora centrado por fonte da água da Prata teve e, igualmente se perdeu, alpendre de travejamento apoiado em colunata da Renascença, com capitéis ornamentados por vieiras e cordões assentes em altos pedestais de granito, cujos restos são patenteados em duas derradeiras colunas de mármore branco de Estremoz, conservadas defronte da entrada nobre do edifício. O portal, que se atinge subindo cinco degraus de pedra, modernos, é desenhado com notória sobriedade: tem jambas chanfradas e dintel de dupla moldura clássico-barroca, de transição, onde se lê a legenda latina tirada do Psalmo 73: EXVRGE + DEVS + JVDICA + CAVSAM + + TVAM Na banda esquerda levanta-se, no 1.° andar, reconstituída galeria coberta, com arcada de dois colunelos esbeltos, de mármore e capitéis túrgidos, da arte mudejar, com folhagem exótica, aproveitados de uma destruída construção local. A casa contígua, com portão largo, no gaveto e de face para o antigo Terreiro da Sé, serviu muito tempo de Cocheira do Arcebispo. No piso nobre existem algumas relíquias de arquitectura seiscentista apreciáveis: Sala pública do Despacho, Segredo e Sala das Audiências, sendo esta a mais notável histórica e artisticamente. É de planta rectangular em excepcionais dimensões (13,20 x 6,80 m), de alto pé direito, iluminada por seis janelas de granito aparelhado, protegidas com grades de ferro batido, de balaústres cilíndricos, martelados, correndo-lhe no rodapé silhar de azulejaria de esmalte branco e decoração azul, com cadeias entrançadas de folhagem, colares e discos na moldura. A cobertura, obra valiosa do estilo barroco, de madeira de carvalho, é disposta em três esteiras desenhadas em caixotões rectangulares e losângicos, apoiada em cimalha guarnecida por triglifos de intenção clássica, tendo no eixo o emblema do Santo Ofício metido em tabela ovóide guarnecida de ornatos, de baixo-relevo. 

O fogão da sala, traçado na parede oriental, tem alterosa chaminé rematada por guarnição de alvenaria preenchida' com volutas de enrolamento. O pavilhão é de telhados de quatro águas. No segundo andar, o mais atingido pelas obras de adaptação necessárias à exploração industrial, apenas escaparam alguns tectos de masseira, entre os quais se destaca o do cubículo quadrado chamado do Inquisidor, que é de caixotões geométricos de ornatos polícromos e dourados, em estilizações fito-antropomórficas, apresentando no eixo, emblema heráldico possivelmente dos Francos ou dos Cortezes. Curioso trabalho do estilo barroco, está cronografado na sanca de 1712. No corpo térreo subsistem poucos vestígios monumentais dos sécs. XVI-XVII: algumas dependências de arcos redondos, cunhais de pedra aparelhada, aberturas de acentuados chanfros defendidas por grossos varões de ferro, uma das masmorras de tormentos, com tecto crivado de argolões destinados aos tratos da polé e o grupo de cárceres, composto por casas isoladas, de planta rectangular, com as paredes inundadas de longas inscrições, súplicas e deprecações religiosas, gravadas umas com instrumentos contundentes e escritas outras com tinta de noz de galha. Obstruído, no muro do lado da travessa das Casas Pintadas, vê-se primitivo arco gótico, de granito chanfrado, em grande volume e de capitéis de ornatos esculpidos dos alvores do séc. XV, que pertenceu à casa do cavaleiro Tristão da Cunha (2). A moradia do grande Almirante Vasco da Gama, ocupada no séc. XVII pelos Bispos-Inquisidores e seus fâmulos e que, ainda em 1591 conservava as célebres composições murais da frontaria, que deram origem ao ancestral topónimo das CASAS PINTADAS, sofreu mutilações exteriores de volume tão manifesto que perdeu o carácter arquitectónico. Apenas, numa empena do terraço que deita para a Rua de Vasco da Gama, existe curiosa janela geminada, de arcos de ferradura, ultrapassados e denticulados, em tijolo vermelho, com colunelos finos e capitéis de mármore branco do estilo híbrido mudejar-manuelino, de c.ª 1510. Contíguo, em silhueta pitoresca, fica o torreão quadrado da escada de acesso, de cúpula octogonal, muito aguçada. 

Do maior interesse arqueológico e artístico é, todavia, o lanço ocidental do claustrim quinhentista, único existente, constituído por arcadas redondas de pilares chanfrados, de granito, defendido por alegretes e de abóbada de três tramos com nervuras ogivais quase planas, em toros iniciados e rematados por mísulas encordoadas, manuelinas, de bocetes de pedra, que foram primitivamente decoradas pelas armas dos donatários - as bilhetas dos Gamas - , como ainda se vê na última chave do lado do oratório. As paredes e os artesões conservam, embora mutiladas por caiações e ruína manifesta, as antigas pinturas a fresco do 1.° quartel do séc. XVI, embora denunciem evidentes interpolações, sobretudo nos armoriais e no retábulo da capela. Mesmo assim, o seu valor artístico e histórico é excepcional, pela combinação do exotismo, originalidade e, sobretudo, poder evocador que encerram. Abundam os elementos zoomórficos alienígenas, sobretudo os do Brasil e Oriente, ligados à mística dos descobrimentos, mas são também frequentes as interpretações mitológicas ou bíblicas. A hidra de Lema, de olhares fulminantes domina a composição: envolventes e enchendo todos os espaços, assimétricos e caprichosos em sentido da mais livre profanidade multiplicam-se as aves exóticas e da fauna regional - pavões e papagaios, cisnes e gansos, perdizes e pegas, galos da Índia combatendo, dragões, panteras, veados e gamas (do timbre heráldico do fundador), coelhos e um truão tocando flauta, tudo limitado por barra renascentista muito repintada. No arco mestre do oratório, também pintados a fresco, vislumbram-se pelicanos, emblema régio, e outras aves em opulenta variedade, nomeadamente das misteriosas e fascinantes terras hindustânicas. Este templete, aberto em portal de arco pleno apoiado em colunelos de mármore com capitéis mudejares tem, igualmente, um tecto de cruzaria gótica com fecho central ornado de armorial esquartelado dos Gamas e Henriques ou Noronhas, partições de ligação matrimonial ou de inquisidores. 

O pequeno recinto, de planta quase quadrada, que mede 2,85 x 2,95 m, está inundado, de alto a baixo, por decorações a têmpera em tonalidades quentes de sépia, azul sujo e toques de terra de Siena. O mesmo exotismo, neste lugar mais acentuado, de interpretações híbridas do sacro e do profano se combinam em emaranhado pictural, por vezes confuso e interpolado, de sereias e centauros. Assim, sobrepostas à composição primitiva de c.ª 1520, nasceram retablitos votivos da Piedade, S. Cristovão, Missa de S. Gregório (?) e Descimento da Cruz (?), de belo e correcto desenho, e um delicioso lambris com figuração renascentista, de cariátides amparando sanefas florais, sátiros, folhagem e verduras, frutos e pássaros orientais. Grande quadro mural da Sagrada Família, muito repintado, obra posterior e de somenos mérito artístico, em policromia mais intensa e variada, com tons de vermelho, azul marinho, roxo, verde e amarelo, serve de altar, envolvido por composição retabular entre colunas, emolduramento e frontão pintado. Cordas e nós, em laçaria caprichosa e intencional, iluminam todos os vãos das nervuras, com alguns, infelizmente, cobertos de criminosas camadas de cal (3). A ala do claustro tem 10,20 m. de comprimento e 2,70 m de largura. Encontra-se em muito mau estado de conservação. Ainda merecem referência, no pátio do lado do nascente, uma pequena galeria de três vãos apilastrados, de alvenaria, com abóbada de aranhiço ogival, miúda e chanfrada, de oito tramos sem chaves, alguns tectos nervurados, anexos, de câmaras seguramente quinhentistas e janelas de guarnições esgrafitadas e pintadas a fresco com ornatos florais. 

De igual modo, no prédio contíguo, propriedade dos herdeiros do prof. António Fernandes Gião, hoje completamente modificado, subsistem vestígios arqueológicos da época do glorioso almirante Vasco da Gama. 

BIBL. António F. Barata, Vasco da Gama em Évora, 1898. Túlio Espanca, Os restos do Palácio de Vasco da Gama, e A Inquisição de Évora, in A Cidade de Évora n.º 19-20 (1949) e 25-26 (1951). ADENDA A mudança da Inquisição Velha, do tempo do Cardeal-Infante D. Henrique, para o novo edifício da Mesa e do Secreto, após reformas estruturais dirigidas pelo arquitecto-mor das Inquisições do Reino, Mateus do Couto, fez-se no dia 19 de Dezembro de 1636, sendo inquisidores de Évora o licenciado João Delgado Figueira, mais tarde Presidente do Tribunal de Goa e o dr. Bartolomeu Monteagudo. A vultuosa obra foi determinada pelo Conselho-Geral dirigido por D. Francisco de Castro, bispo da Guarda e pelos secretários António Simões de Vasconcelos, Lopo Rodrigues Veladas, Sebastião Paes Viegas e Gaspar Rodrigues. (1) O imóvel sofreu vultuosa transformação entre 1964-65 para funcionamento dos Estudos Superiores, criados pela benemérita Fundação Eugénio de Almeida, segundo projecto do arquitecto Rui Couto, sancionado pela Direcção-Geral dos Monumentos Nacionais. O pavilhão principal foi aumentado para a banda do Templo Romano; o corpo baixo dos cárceres acrescido de um andar; a frontaria corrigida de escadório e melhorada nos espaços envolventes; deslocadas as duas únicas colunas clássicas, marmóreas, subsistentes do alpendre primitivo; reconstituído no alçado do murete posterior, ocidente, o portal do pátio e transformada, estruturalmente, a caixa interior e os acessos à antiga Sala dos Julgamentos. (2) Outro portado gótico se descobriu no alçado principal nas obras de 1964. (3) Não era, seguramente, o oratório que nos meados do séc. XVI foi utilizado pela enfiteuta D. Leonor Álvares de Távora e a Visitação Eclesiástica de 1594 condenou como impróprio para fins religiosos. Este estava já profanado e construído no meio da casa sobre um passadiço, com altar de madeira arruinado e tecto composto ao uso sagrado. 

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