A famosa doçaria conventual alentejana tem em Évora um dos seus pontos altos, o
que não é para admirar se dissermos que, coincidindo com o auge da produção da
cana do açúcar na colónia do Brasil, existiam no século XVIII na cidade 22 conventos
pertencentes a outras tantas ordens religiosas. Principalmente no Sul, estas tinham
sido decisivas na lutas contra o invasor muçulmano, tendo os primeiros monarcas
portugueses incentivado a criação de mosteiros, que funcionaram muitasvezes como
pousada dos próprios e dos seu séquitos, ou das famílias mais nobres, quando em
trânsito pelos territórios do Reino.
Em recompensa da participação e apoio nos combates contra os infiéis concederamlhes
os reis avultados domínios e formas de senhorio, que os tornaram poderosos e
riquíssimos.
Pela hospitalidade concedida e consoante o tempo de duração da estadia,
doavam-lhes os senhores pingues esmolas, que contribuíam também para que ali nada
faltasse em tempo algum. Este facto, aliado mais tarde à presença da Corte em Évora,
no decurso do chamado período de ouro dos Descobrimentos, fez com que as congregações
monásticas radicadas na cidade tivessem então triplicado. Os Conventos eram,
pois, postos seguros de abrigo, respeitados, de excelente acomodação e bálsamo para
o espírito, o paladar e o estômago.
Paradoxalmente, os doces tinham sido trazidos para a Ibéria pelos árabes. Eles eram
os principais cultivadores de açúcar e tinham-no transportado como elemento medicinal,
benéfico para os incómodos do aparelho digestivo e respiratório. Era então equiparado
às especiarias, igualmente de elevado preço e muito apreciado pela sua doçura.
O seu consumo excessivo levou no entanto os médicos a declararem-no, em princípios
do século XVII, como causador de graves alterações no sangue, apodrecimento dos
dentes, origem indiscutível do escorbuto e não aconselhável a pessoas biliosas.
Durante cerca de uma centúria desenvolveu-se acesa polémica entre os seus defensores
e detractores, chegando-se à conclusão de que o seu uso redundava em benefício
quando feito com moderação, repudiando-se porém os excessos. Entretanto os Portugueses
chegaram ao Brasil e deram início, em força, à exploração da cana do açúcar.
Com o desenvolvimento da produção, cujas técnicas de refinação iam conhecendo
simultaneamente progressos substanciais, o açúcar começou a chegar a Portugal em
grandes quantidades e a preço muito acessível.
A sua abundância reflectiu-se na produção doceira regional de que
era elemento tradicional, juntamente com os ovos, a farinha, as amêndoas
e o azeite. Os doces, normalmente confeccionados pelas senhoras,
tornaram-se então presença assídua nos grandes banquetes senhoriais,
como complemento das lautas refeições onde a carne predominava.
Estas opíparas refeições eram bastas vezes confeccionadas no conventos
femininos, que estavam pejados de freiras oriundas de famílias ricas
que para ali eram remetidas por serem filhas bastardas ou por não conseguirem
consorciar-se até determinada idade. Havia igualmente as que ali se refugiavam em função de romances
desfeitos ou contrariados ou, mais raras, as que o faziam por devoção.
De qualquer forma essa entrada era sempre acompanhada de magníficas doações. Na vida de clausura e de devoção
exigia-se-lhes um comportamento exemplar (nem sempre cumprido), mas a frugalidade não constava da lista de
obrigações.
Para o interior dos mosteiros transportavam o tipo de alimentação que faziam como leigas, a ponto das
receitas palacianas e senhoriais se terem incorporado nos hábitos da vida monacal. Ali sobejava-lhes o tempo para
recriar, experimentar e inovar as múltiplas possibilidades que a abundância de açúcar veio proporcionar, criando
novos doces. Para além dos grandes senhores, as freiras forneciam doçaria também a outras pessoas, desde que o
seu estatuto ou o peso da sua bolsa lhes parecessem recomendáveis.
Em separata das Actas do Congresso de História no IV Centenário do Seminário de Évora, que aborda o tema
das Ordens Religiosas na Arquidiocese, o cónego António Fernando Marques identifica os 9 conventos femininos
que no século XVIII existiam na cidade: S.Bento de Castris (um dos mais antigos do Reino, fundado em 1274 pela
Ordem de Cister); Santa Mónica (ramo feminino da Ordem dos Agostinhos, 1380); Nª. Snrª. do Paraíso (Dominicanas,
1450); Santa Clara (Franciscanas, 1452); Santa Catarina de Sena (Dominicanas, 1547); Santa Helena do
Monte Calvário (Franciscanas, 1565); Salvador (Franciscanas, 1602 e de todos o mais rico); S. João da Penitência
(Maltesas?) e Convento Novo (Carmelitas Descalças, 1681).
No seu livro intitulado “Doçaria Conventual do Alentejo”, Alfredo Saramago (1938-2008), o consagrado antropólogo
e investigador das tradições gastronómicas portuguesas assinala, entre outras, as principais guloseimas que
os tornaram procurados.
O Convento do Paraíso seria então especialista no Bolo Real, no Toucinho do Céu, Lampreia
de Ovos, no Pão de Ló e no Bolo Preto, enquanto o do Calvário ganhava encómios com o Pão de Rala com
Azeitonas, o Bolo de Mel e o Porco de Chocolate com recheio. Em Santa Clara tinham fama o Doce de Escorcioneira
(hoje desaparecido mas que há 50 anos ainda era uma especialidade de Évora), a Sopa Dourada, as Barriguinhas
de Freira e os Queijinhos do Céu. Os Conventos de S. Bento e de Santa Mónica disputavam primazia no fabrico dos
Manjares Branco e Real e da Encharcada, sendo que o segundo era ainda conhecido pela excelência do seu Morgado.
Mas também o Convento do Salvador se fazia notar com a apresentação das Orelhas de Abade, dos Rebuçados
de Ovos e dos Mimos de Freira. Em todos os outros existiam, da mesma forma, excelentes receitas.
Com o advento do liberalismo as Ordens Religiosas foram extintas. Em relação aos conventos femininos aguardou-
se pela morte das últimas religiosas para o encerramento das portas. Depois, ou foram afectos a outros fins ou
foram demolidos, como os do Paraíso, S. João da Penitência ou do Salvador, de que resta a Torre do Salvador. Com
o regresso posterior das Ordens a maioria veio a servir para prestação de assistência social a jovens desamparadas.
Para prazer de todos, as belas receitas da doçaria não se extraviaram e ainda hoje fazem as venturas de qualquer
palato. Na cidade não há restaurante que não possua doces conventuais eborenses na sua carta de sobremesas. A
Rota dos Sabores Tradicionais, excelente iniciativa municipal centrada na promoção dos sabores da mesa alentejana,
consagra-lhes o mês de Maio. Mas o melhor local para os saborear e adquirir é sem dúvida, a Pastelaria Conventual
Pão de Rala, na Rua do Cicioso, onde Maria Ercília Zambujo é mestra na confecção do doce que dá o nome ao
estabelecimento, bem como do Toucinho de Noz, das Encharcadas, das Barrigas de Freira e dos Morgados.
Texto: José Frota
Fotografias: Carlos Neves
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