domingo, 18 de março de 2018

Palácio Real de D.Manuel


O Paço Real de Évora, designado nas crónicas e documentos oficiais, antigos, de S. Francisco, por estar compreendido nos terrenos e em grande parte do primitivo convento dos padres regulares desta Ordem, teve seus princípios em tempo do rei D. Afonso V c.ª de 1470. Ocupando, inicialmente, a Sala dos Estudos, onde a tradição afirma que el-rei havia fundado a primeira Livraria da Corte, ainda em sua vida absorveu outras partes do mosteiro, incluindo certa zona da cerca, a qual era vastíssima, pois se estendia das Portas do Rossio à do Raimundo. D. João II, que pousou nos Estáus da Praça Grande, no Castelo, no solar da Torre das Cinco Quinas e no Convento do Espinheiro, deu incremento ao edifício realengo e construiu na horta o célebre pavilhão de madeira, em 1490, que decorou ricamente e onde se efectuaram os desposórios dos príncipes D. Afonso de Portugal e D. Isabel de Castela, aquela tão afamada boda que causou sucesso na Europa pela enormidade dos seus banquetes, torneios e festejos públicos, como diz Garcia de Resende na Crónica de D. João II, caps. CXVI e sgs. 

A mencionada ampliação, que abrangeu o levantamento das tercenas reais, foi determinada em conselho conventual, a instâncias de D. João II, e teve efeito em 2 de Novembro de 1493, sob presidência do guardião da comunidade, fr. Martinho, guardando el-rei, em compromisso corroborado pela chancelaria e confirmado pela Bula papal Ex-Comisso, de Alexandre VI, dada em Roma em 14 de Abril de 1495, a obrigação solene de reedificar e engrandecer a casa religiosa, que guardava, no futuro, para seu real padroado. Infelizmente, ao que se sabe, toda essa imensa obra de pedraria da época gótica e manuelina, onde era ornamento insubstituível a Sala das Embaixadas e os Refeitórios, desapareceu amalgamada na absorção utilitária de oficinas monásticas e na demolição definitiva do edifício em 1892-95. D. Manuel imprimiu à casa notória importância e originalidade e entregou aos arquitectos Marfim Lourenço, Diogo de Arruda e ao castelhano Pero de Trilho sucessivas empreitadas, que vão de 1507 a 1520 e se estenderam indistintamente pelo Convento, Capela Real e Paço de S. Francisco. Seu filho e herdeiro no trono, D. João III, aumentou a grande obra e concedeu-lhe uma dignidade jamais atingida através dos séculos, habitando na casa anos seguidos e conservando-a com esmero tanto no domínio arquitectónico, entregue aos cuidados dos padeiros g mestres de pedraria da Comarca, Francisco de Arruda e Diogo de Torralva, como no sumptuário, pois o seu recheio mobiliário e jardins foram famosos em Portugal. 

De facto, a residência era considerada, outrora, como a mais notável e grandiosa do reino, depois do Paço da Ribeira, de Lisboa. Na Sala da Rainha, do corpo gótico, se reuniram as cortes de Março de 1490, e nasceram vários dos filhos, mortos-nados, de D. Manuel e D. João III; no Verão de 1535, no edifício, se jurou herdeiro da coroa o jovem príncipe D. Manuel, durante as cortes nacionais para o efeito reunidas. Nas mesmas casas se deu, em 1497, a solene investidura de Vasco da Gama como comandante da frota de descobrimento do Caminho Marítimo para a índia, concedida pelo próprio monarca Venturoso: e nas décadas seguintes a corte assistiu a várias representações do imortal Gil Vicente, incluindo os Autos Pastoril Português, Auto de Mofina Mendes e a Floresta de Enganos, artista que a tradição local afirma ter-se finado nos paços de Évora cerca de 1536. D. Sebastião e D. Henrique pouco residiram aqui: o primeiro por preferir a casa dos Capitães-mores, situada ao lado do seu querido Colégio da Companhia de Jesus, e o Cardeal-Infante porque habitava propriamente adentro dos muros do mesmo estabelecimento cultural, onde havia fundado a Universidade do Espírito Santo em 1559. Servindo, de longe a longe, a pousada de príncipes, embaixadores ou religiosos do favor régio (D. António, Prior do Crato, recebeu nele lições do douto dominicano fr. Bartolomeu dos Mártires), a grande mansão alentejana, com o advento da dinastia filipina maior abandono sofreu, porque a permanência dos reis espanhóis na nossa terra, a partir de Filipe II, passou a fazer-se a longo prazo, originando uma oportuna petição da comunidade franciscana a seu favor, durante a visita a Évora, de Filipe III, em Maio de 1619. 

Satisfeito o pedido, segundo diploma régio de 28 de Setembro do mesmo ano e confirmado em capítulo presidido pelo provincial fr. António da Trindade, a entrega de boa parte do corpo palaciano verificou-se na presença do Provedor da Comarca, Dr. Paulo Gomes da Fonseca e Gaspar Velho, almoxarife dos paços, compreendendo a Sala da Rainha e duas câmaras contíguas ao dormitório fradesco, destinadas estas a Enfermarias monásticas. Na mesma dotação se encorporavam os jardins e laranjal. Especificava o Alvará, todavia, que em tempo algum se poderia modificar a traça monumental dos imóveis ou construir obra de alvenaria nos espaços destinados a recreio, porque, diz o documento, quando aquele monarca ou quaisquer dos seus sucessores desejassem reedificar os paços para seu aposento, a comunidade seria constrangida a restituir, pura e simplesmente, as mercês neste diploma outorgados. Data deste período a integração do maior e mais belo conjunto gótico-manuelino do Paço Real de Évora na amálgama conventual e, desta forma, veio a sofrer as vicissitudes impostas ao edifício quando da sua extinção em 1834. Assim, segundo o Dec. Lei de 25 de Julho de 1845, a Câmara Municipal obteve do Governo certas partes do edifício, o refeitório manuelino e anexos para neles instalar o Tribunal e a Junta de Freguesia de S. Pedro: quatro anos após, vasta zona palaciega, o belo claustro quinhentista, os Gerais e o Noviciado vieram a terra para darem lugar ao novel Mercado Público da cidade. 

No ano de 1873 outro crime irreparável se cometeu - a destruição integral da típica torrinha do Aqueduto da Água da Prata, desenhada pelo arquitecto Francisco de Arruda - sobranceira ao pórtico da Igreja de S. Francisco, obra da maior curiosidade de arquitectura do estilo da Renascença. Finalmente, o Dec. Lei de 19 de Abril de 1892, assinado pelo rei D. Luís, autorizou a Câmara a vender os restos do Paço e Convento, onde estava encorporada a famosa Sala da Rainha e grande parte dos claustro gótico de 1376. Mais afortunado foi o destino do pavilhão meridional, a conhecida Galeria das Damas, que desde épocas antigas a coroa entregara ao Conselho de Guerra e onde subsistira um depósito de material militar designado do TREM. Nele se haviam acomodado pertences municipais, se realizaram festividades e representações populares; serviu, também, no corpo térreo, de Museu Arqueológico Cenáculo até que no Inverno de 1881, por desabamento de grande parte das coberturas, que já não eram as primitivas, ficou em grave ruína. Pouco tempo volvido, com licença da Câmara, a Junta Distrital determinou aproveitar o edifício para Museu de produtos naturais e industriais do Distrito, formação incipiente de um Gabinete etnográfico que não pôde levar avante, mas originou o seu restauro e utilização para casa de espectáculos públicos, e a adaptação foi entregue aos estudos do eng. Adriano da Silva Monteiro que, dentro do critério e planos coevos, lhe introduziu modificações de tal forma substanciais que o descaracterizaram estruturalmente. 

Cumpre, todavia, esclarecer que esse projecto, conduzido conforme o gosto romântico da época, onde predominavam as armações de ferro fundido, grandes superfícies de vidraria num agigantado segundo andar sobrepujado por lanternim de cobertura piramidal e a escadaria de dois lanços, que eliminara outra muito mais antiga, de encosto ao lado sul do torreão, embora mascarassem o todo arquitectónico primitivo, não conduziu a uma destruição irreparável do esqueleto quinhentista do imóvel. Transformado então em Teatro Eborense nele se inauguraram as sessões cinematográficas e se realizaram algumas festas solenes e exposições de floricultura dedicadas aos reis D. Luís e D. Carlos, até que, na madrugada de 8 de Março de 1916 um incêndio de grandes proporções o destruiu parcialmente. Do valioso palácio, que ocupava vastíssima área coberta e descoberta, com vários corpos e pavilhões, chegou ao nosso tempo apenas, a galeria quinhentista designada das Damas, que a Direcção Geral dos Monumentos Nacionais restaurou ultimamente (1943-1947). Se o restauro merece louvores incondicionais, por ter salvo de ruína e do abandono confrangedor as históricas paredes, o critério adoptado para uma tentativa de reconstituição arqueológica parece ter falhado em muitos aspectos que alienaram, irremediavelmente, a possibilidade de uma reintegração pura dentro das formas usuais da arquitectura manuelina. 

O pavilhão, construído nos sentidos norte-sul, em plano rectangular, tem, actualmente as dimensões exteriores seguintes: comprimento total, 57,70 m largura, 11,70 m. Compõe-se de três partes distintas, a saber: Corpo principal, a sul, ornamentado pelas janelas manuelinas e terminado com o eirado voltado para a planície alentejana; parte central, incluindo a torre de andares e o pavilhão correspondente e, finalmente, a galeria do norte, muito modificada no séc. XIX mas que mantém, com a pureza original, a alpendurada da época manuelina. Este corpo, de vãos abertos, onde se recolhia a carruagem, compõe-se de quatro tramos de arcos plenos, de alvenaria, apoiados em duas naves de pilares de granito decorados por capitéis e ábacos encordoados, revestidos de toros, nós, discos e outros elementos manuelinos, sem excluir, evidentemente a flora da arte coetânea. Curiosa mísula granítica existe no arco exterior (lado nascente), de laçaria terminada por cabeças de bichos estilizados. A abóbada é de ogivas chanfradas, de alvenaria, com chaves de granito lavradas ao gosto da 1.ª vintena do quinhentismo, de temas naturalistas. 

Externamente, esta parte do edifício está reforçado por botaréus de andares ornamentados com bolas; o piso alto, de arcadas de quatro arcos abatidos, com colunelos de granito e ornamentos frustes e reproduzindo temas manuelinos são, na totalidade, modernos e acusam nítido desgaste da violenta acção do fogo de 1916. Muito mais interesse artístico possui o lado meridional, embora de menores proporções, de empenas guarnecidas, no piso nobre, com dez formosas janelas geminadas, de arcos ultrapassados em desenho de ferradura, de granito e colunelos de mármore regional finamente ornamentados nos capitéis, ábacos e bases, por motivos comuns ao manuelino: cordame, bolas e nós, vieiras, uvas e parras e outros elementos florais. Os capitéis, de planta quadrangular e as bases de secção poligonal, acusam a nítida influência árabe então dominante na cidade, a que não estão alheios os mestres arquitectos coevos: Diogo de Arruda, Martin Lourenço, Duarte de Medina, Álvaro Anes, etc. Lateralmente, as janelas são guarnecidas por altos mastros ou toros circulares, interrompidos com ornamentos naturalistas e geométricos, habituais na decoração mudejar-manuelina desse tempo. No corpo do rés-do-chão rasgam-se, igualmente, dez janelas de profundos vãos, em arcos abatidos e chanfrados, de granito aparelhado, em cujas jambas e dintéis subsistem vestígios mutilados de decoração relevada. Esta dependência do palácio, depósito de guerra, originalmente composta de cinco tramos e duas naves e hoje somente com três tramos, porque a obra de restauro lhe alienou dois da entrada, conserva as coberturas e seus pilares de secção octogonal, com capitéis cilíndricos, emoldurados e bases quadradas, com ornamentos de vieiras estilizadas. O salão, construído no tipo severo e utilitário das obras da época final do remado de D. Manuel, com abóbada de arcos abatidos e redondos, tem robustas nervuras de aresta viva, desornadas de bocetes terminais. 

O torreão axial, voltado ao Nascente, é a parte mais nobre e melhor equilibrada de todo o edifício. De planta rectangular, em dois andares e rés-do-chão, este apoia-se em robustíssimas albarradas de granito aparelhado, sendo uma nova e substituindo o pano de muralha quatrocentista que, até meados do século passado, ligava o palácio à fortificação medieval. A cobertura, de secção hexagonal, muito agulhada, possui veios de aresta viva terminados em volutas de enrolamento e pináculo circular de cata-vento de ferro forjado, com a Cruz de Cristo, modernos. Nos ângulos faciais do beirado, subsistem duas curiosas gárgulas de calcário branco, em representação zoomórfica. O interior da torre, nos três pisos, embora melhorados, conserva a estrutura primitiva. O rés do chão, com dois portados de arcos de ferradura, agora obstruídos e feitos pelo eng. Adriano Monteiro depois de 1881, tem abóbada nervada, de simples chanfradura com chave de granito, em pinha de andares, manuelina e, na face exterior, a oriente, uma bela janela de peito, proveniente da demolida Sala da Rainha, do mesmo Paço de S. Francisco. Esculturada em mármore branco, da região, tem meias colunas nas jambas, base lavrada ao gosto clássico, de motivos naturalistas e dintel de cordão e óvulos estilizados afrontados por medalhão de figura masculina tratada à maneira romana. O primeiro andar, ostenta três elegantes arcadas geminadas, de volta inteira, apoiadas em colunas de mármore branco, com capitéis de andares, alguns revestidos de discos manuelinos, de molduras poligonais e bases entrançadas, circulares ou octogonais. Cobertura de aresta, vulgar. 

O arco de comunicação ao corpo nobre, é de carena, de toros ornamentados por cordas e nós, donde rompem, no tímpano, duas esferas armilares, terminais, de granito, e o armorial da Casa Real Portuguesa, de calcário, com as empresas manuelinas e a Cruz de Cristo, em composição triangular rematada por urna piriforme prenunciando as formas renascentistas. Portado interno, simples, de vergas e jambas de granito chanfrado, com elementos flordelizados. O último andar, que parece obra ligeiramente posterior ao projecto primitivo da Galeria das Damas, já da época de D. João III e que se atinge subindo estreita escada helicoidal, desenhado na fachada poente e muito beneficiado nos restauros de 1881 e 1943, tem cobertura octogonal assente em trompas, de alvenaria e discreta chaminé que arranjos práticos haviam destinado a uso do caserneiro, quando o edifício foi adaptado a Trem Militar. Três formosas janelas de peito, rectangulares, dos alvores do 2.° terço do séc. XVI, guarnecem as fachadas: são todas apilastradas, com frontões de vieiras e interessantes leques, abertos, ricamente esculturados, fachos laterais, vegetalistas e remates de umas e o serpe manuelino. Nos dintéis, rosetões de flores e os aventais, em baixo-relevo, são revestidos de formas renascentistas e platerescas com grandes S curvilíneos, entrelaçados, recobertos de vestígios marinhos e exóticos. Esta ornamentação, bem rara e estranha na arquitectura portuguesa coetânea, evoca a arte decorativa da vizinha Espanha, principalmente da região de Salamanca, de que não deve estar afastada estilisticamente. 

O pavilhão central correspondente ao mesmo andar, é obra moderna, coberto por telhado de quatro águas iluminado de igual número de frestas e de tecto apainelado, em estuque branco, ao gosto setecentista. O corpo nobre, cujo acesso se faz através de cómoda escadaria cocleada, de mármore branco totalmente construída nas grandes obras do Estado entre 1943-47, compõe-se de três salas ligadas e divididas somente por pequeno vestíbulo de triplas arcadas de arcos de ferradura apoiados em colunas de granito com ornamentação manuelina, que nascem de altos pedestais da mesma pedra. As coberturas, inspiradas em tectos de alfarge, árabes (o do lado Sul) e na antiga carpintaria artística portuguesa, de esteiras e caixotões geométricos, policromos são, do mesmo modo, obra moderna mas executada dentro de modelação inteligente e apropriada ao lugar. Finalmente, a galilé meridional, que tanto encanto concede ao velho paço quinhentista e outrora caía sobre o fosso militar, é utilizada como eirado através de duas elegantes portas maineladas, em materiais e desenho idêntico às janelas de todo o pavilhão contíguo. É composto, o alpendre, de cinco arcos ultrapassados e denticulados, de ferradura e tijolo vermelho, abraçados por toros circulares, lisos, de granito e por cordão contínuo que envolve toda a arcada e as respectivas mísulas. Pilares graníticos, chanfrados, quadrangulares e os angulares de secção poligonal, suportam o balcão, que é ornamentado com cruzes de Cristo encerradas em tabelas quadrilobadas, de trabalho recente, devido à reconstrução do eng. Adriano Monteiro, de 1885. 

BIBL. Pe. Francisco da Fonseca, Évora Gloriosa, Roma, 1728, pág. 348; Dr. Augusto Filipe Simões, Archivo Pitoresco, Lisboa, 1868; Túlio Espanca, Palácios Reais de Évora, Cadernos de História e Arte Eborense, III, 1946; Henrique da Fonseca Chaves, As obras do Palácio de D. Manuel, in A Cidade de Évora, 17-18, 1949, págs. 317-327; Boletim da Direcção dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Palácio de D. Manuel, Março de 1955 - n.° 79. 

domingo, 11 de março de 2018

Palácio dos Morgados da Mesquita


Fundação do 1.° Conde do Prado D. Pedro de Sousa e de D. Joana de Melo, sua 3.ª mulher, no reinado de D. João III, esteve poucos anos em poder dos descendentes. Em fins da mesma centúria era seu proprietário D. Garcia de Castro, conselheiro de S. Sebastião e Governador da praça africana de Mazagão, casado com D. Isabel de Meneses, pais do Presidente do Senado de Lisboa D. João de Castro, 2.° Governador Geral do Algarve. Em 1638 habitava nele um descendente, de nome ignorado, que foi morto em duelo, na Praça Grande, pelo alcaide Luís Roiz Matoso. No ano de 1776 vivia na casa o capitão de cavalos João da Mesquita. Foi seu derradeiro possuidor deste ramo e último Morgado de Almeida, Vila Nova de Zambujal e Senhor de S. Manços, D. João da Mesquita, fidalgo da casa real, tenente-coronel das milícias de Évora e coronel-honorário dos Batalhões Nacionais, que morreu em 1867. 

Na década seguinte o imóvel passou, por alienação voluntária a Luís Valente Pereira Rosa, cujos herdeiros o venderam ao Estado para instalação do Comando da Brigada de Évora e a partir de 1911 como sede da 4.ª Divisão Militar, transformada na reforma de 1926 em 4.ª Região Militar e actualmente em 3.° Região. A construção mantém, exteriormente, a silhueta e volumes dos meados do seiscentismo, de planta oblonga, apenas de um só andar iluminado por 18 amplas janelas de sacada, com ombreiras e cornijas direitas, de granito, defendidas por balcões de ferro forjado, do estilo barroco. Os telhados são de quatro águas. Sensivelmente no eixo do edifício, que olha ao Oriente, com passagem pública, existe a Rua de S. Cristóvão, com seu passadiço em túnel assimétrico, de abóbadas de cruzaria fortemente contra-fortada. No corpo térreo subsistem algumas dependências de valor arqueológico compostas por tectos de artezões de aresta viva ornatados com obra de estuques trabalhados e coloridos a escaiola. A principal conserva formosa abóbada abatida, de tabelas clássicas, rompentes de mísulas engalanadas, prismáticas; as cartelas, redondas e ovóides, estão engrinaldadas por lambrequins farfalhudos, estando dois dos painéis armorejados com escudos partidos, dos Castros dos seis besantes. Eram as antigas casas da carruagem, cocheiras e dispensas. Numa câmara que deita para o varandim dos jardins, designada antigamente de Sala de Cupido, subsistem as únicas decorações de valor artístico do paço. Mantém as proporções primitivas, de planta rectangular, com tecto de estuques miudinhos, posteriores. Forrando as paredes, pinturas a óleo sobre tela dispostas no seu maior comprimento em triplico e nas menores, isoladas, quatro divindades ou Musas (Alt. 1,48 x Larg. 0,80 m). 

Os painéis maiores representam as Três Graças levando Cupido em triunfo numa quadriga e Castigo de Cupido pelas três Graças (Alt. 1,48 x Larg. 2,60): lateralmente, faixas pintadas com temas pastoris e marinhas, preanunciando as formas de J. Pillement; sotopostos, em medalhões elípticos e ovóides, querubins e alegorias mitológicas em grisaille. Trabalho de feição académica italianizante, foi pintado em 1774, segundo se admite, por Cirilo Wolcmar Machado, quando da sua demorada estadia no solar como hóspede do Morgado João Reboredo Da Mesquita, capitão de cavalos do Regimento de Dragões de Évora. As composições foram, ultimamente, restaurados pelo pintor alentejano João Barata. Da mesma época e do mesmo artista setecentista existiram na cobertura e nos alçados laterais do oratório palaciego, composições a fresco, que foram completamente destruídas nas grandes obras de adaptação do imóvel, realizadas na década de 1930. A fachada posterior do pavilhão Sul-Ocidente, que deita para os jardins, é do mesmo tipo construtivo do axial, igualmente guarnecido por janelas de sacada, graníticas e de bacias de ardósia. As grades, de barrinha, são vulgares e já dos alvores de novecentos. A escada exterior de comunicação ao piso nobre é terminada por alpendre de arcos geminados, com colunelos toscanos e capitéis coríntios, obra de pedraria que vem da reformação da casa (meados do séc. XVII). Num pátio militar, aproveitado como tanque de beberagem de cavalos, subsiste uma caixa tumular de calcário branco com a frente ornada de placas rectangulares, emolduradas, tendo a central, em tabela barroca, a data de 1691. É provável que o túmulo, de personagem desconhecido, tenha pertencido ao demolido e vizinho Convento de S. Domingos. 

BIBL. João Rosa, Pintores dos Séculos XVIII e XIX no Alentejo, in A Cidade de Évora, n.° 11, 1946. 

domingo, 4 de março de 2018

Palácio dos Duques do Cadaval


Compreendido no corpo melhor conservado do castelo velho, nas bandas do Ocidente, foi doado pelo rei D. João I ao leal servidor Martim Afonso de Melo, com menagem da alcaidaria-mor da cidade, em 15 de Janeiro de 1390, benesse que se perpetuou na família até o reinado de D. Manuel I. Seu filho e herdeiro, do mesmo nome, guarda-mor de D. Duarte e de D. Afonso V obteve, em 30 de Abril de 1446, a doação de novos chãos, torres e muros da mesma fortaleza medieval, muito maltratada pelos desmandos dos povos revoltados, que a haviam incendiado quando dos incidentes do Interregno do Reino, em benefício do Mestre de Avis, no mês de Janeiro de 1384. 

Nestes recentes domínios instituiria em 1485, seu filho D. Rodrigo de Melo, 1.° capitão de Tânger, o Convento de S. João Evangelista para panteão familiar, como genearca dos condados de Olivença e Tentúgal, marquesado de Ferreira e ducado de Cadaval, este último titulo outorgado pelo rei D. João IV, em 1648, a D. Nuno Álvares Pereira de Melo, um dos mais ilustres Ministros da Coroa de Portugal de todos os tempos. Ao paço andam ligados episódios históricos de projecção nacional. Nele, onde pousava D. João II, esteve encarcerado o Duque de Bragança, D. Fernando II e se reuniu o Tribunal da Relação de Lisboa que o condenou à morte por decapitamento na Praça Maior, em Junho de 1483. D. João III, também habitou nas casas, em 1533, assim como D. João, 8.° Duque de Bragança, futuro monarca Restaurador, durante o matrimónio de D. Francisco de Melo, 3.° Marquês de Ferreira, com D. Joana Pimentel, prima da Rainha D. Luísa de Gusmão e filha do Conde de Tavara, Vice-Rei de Valência e da Sicília, em Agosto de 1635. D. João V visitou o paço em 1729, e ultimamente, o 6.° Duque de Cadaval, Governador Militar de Lisboa por D. Miguel I, em 1834, abandonou o país, como exilado político e os seus descendentes jamais o frequentaram, passando ao regime de enfiteuse particular despojado do recheio artístico e monumental. A sua maior parte é ocupada, ao presente, pela Direcção Geral das Estradas do Distrito de Évora. Em meados de 1965, o 10.° duque D. Jaime IV Álvares Pereira de Melo, patrocinou a instalação de incipiente GALERIA DE ARTE, no piso térreo do paço, composta de peças deslocadas da igreja dos Lóios ou provenientes das colecções da casa, prevendo-se, também, a transferência da Biblioteca de Muge para os corpos principais do edifício, em futuras obras de adaptação orientadas superiormente para o efeito. Conserva o vetusto palácio a silhueta fortificada que os avoengos lhe imprimiram e a tradição de arquitectura civil-militar na Idade-Média mantinha em Espanha e Portugal. 

Assenta em vasto lanço da muralha romano-visigoda limitado a ocidente pela torre pentagonal, a nascente pela torre sineira da Igreja dos Lóios e a sul pela torre quadrada de Sertório, que demarcava perfeitamente os domínios entre as casas de Melo e de Castro, Condes de Basto, estes capitães de ginetes da Comarca e aqueles alcaides-mores. O corpo principal, ao sul, que deita para a Rua Dr. Augusto Filipe Simões, antigo Terreiro do Marquês, flanqueado por duas poderosas torres de cantaria e alvenaria, apesar dos inúmeros arranjos posteriores, conserva solene imponência na alvinitente fachada caiada de branco ao gosto habitual da região. Na frente nobre, corre uma série de janelas de sacada, de umbreiras e cornijas de granito defendidas por ferragens forjadas, com balaústres de secção quadrada e circular, do tipo corrente dos fins do séc. XVI, começos do XVII e inspirados na dureza da arte castelhana do barroco filipino. A empena, protegida entre o contraforte de andares com cunhais de pedra aparelhada e a torre das cinco quinas é arranjo do séc. XIX, para fins utilitários, pois até 1851, manteve a perspectiva quinhentista, de aberturas estreitas e chaminés alterosas de repisas trilobadas. Do mesmo modo, o friso de ameias chanfradas que cortina a platibanda do edifício, substituiu outro, apenas parcial, de merlões góticos, do quatrocentismo e coevos do primeiro Conde de Olivença. Aquela obra corresponde a trabalhos determinados por D. Rodrigo de Melo, 1.° Conde de Tentúgal e terminados c.ª de 1541. O grande portado da entrada, que comunica ao pátio, celeiros, adegas e escadaria do entre-solo, é feito de vergas e jambas chanfradas, de granito local. 

A torre albarrã, de secção pentagonal, coberta com telhado de quatro águas, como cunha avançada do solar, desafia na vetustez e volumes o casario humilde que se acolhe a seus pés e do âmago de pedra lavrada, das altas e velhas janelas quinhentistas, domina-se paisagem admirável, embora severa, da monocromática terra alentejana. Parte da sólida construção, incontestavelmente do tempo dos visigodos, pertenceu à cinta muralhada da cidade e talvez como torre de Menagem do castelo medieval português; a partir de 1390 foi adaptada a residência dos alcaides e, da centúria imediata, parece conservar o coroamento de ameias de alvenaria. Ligeiramente posterior é a janela angular, mainelada e de arcos de ferradura, de calcário, que apresenta nos capitéis, ábacos e bases prismáticos determinadas características somente usadas pelos alvanéis moiriscos da época manuelina. Todavia, onde o histórico paço apresenta maior interesse arquitectural, grande pitoresco e monumentalidade é, sem dúvida, no extradorso do lado norte, que cai para o Largo dos Colegiais. Todo o edifício pousa neste sítio sobre antiquíssimos panos do muro romano-godo aproveitado no séc. XIV, pelos mestres arquitectos da cerca nova, e os alçados assimétricos do casario foram surgindo irregulares e expontâneos, sem planos, conforme as necessidades familiares dos nobres fidalgos, em casaria rompente na linha do céu, sem buscas de harmonia. 

Assim, nasceu uma massa heterogénea de volumes desencontrados dum extraordinário encanto arqueológico, combinados com os da ousia poligonal e empenas laterais da Igreja dos Lóios, reforçadas por botaréus e arcobotantes de grande arcada. Essa mesma linha de defesa da cidade, patrimonial da alcaidaria-mor, constituía uma série de torreões protectores das vetustas portas da Traição e do Moinho de Vento (aquela obstruída quando da fundação da mesma casa religiosa de S. João Evangelista, e esta refeita na totalidade em 1517, pelo Conde D. Rodrigo de Melo, segundo licença real de D. Manuel). Neste período, presume-se, avançou o chão do pátio palaciano, na linha norte, que tapou um lanço de muralha entre esta última porta e a torre quinaria, e se construiu, no prolongamento desta, a casa da carruagem, vastíssima, sobrepujada por câmaras de criados, com seus cunhais de granito em andares. Daquelas torres uma foi aproveitada pelos padres lóios para sineira do convento; outra integrada no jardim do paço, como estufa, de formoso portado com arco de ajimez, mudejar, de tijolo vermelho, coluneis marmóreos e de remate cónico, muito agulhado; e a terceira, de secção quadrada, como atalaia da porta militar, ultimamente restaurada, com ameias embebidas no embasamento do terraço. A torre quadrangular da fachada principal, com dois andares e altivo revestimento de ameiado gótico de secção cúbica e remate piramidal constitui, também, vestígio assinalável do Castelo Velho. 

Possui duas janelas notáveis, nas faces norte-sul, dos fins de quatrocentos, presumivelmente construídas no tempo do ilustre donatário D. Álvaro de Bragança, casado com D. Filipa de Melo, talentoso fidalgo considerado um dos introdutores do estilo mudejar no Alentejo, pelo seu conhecimento e interesse directo da arquitectura espanhola do sul da Andaluzia, pois foi, durante anos, como exilado político junto dos Reis Católicos, alcaide-mor dos alcáceres reais de Sevilha. São sacadas geminadas, de arcos ogivais, de lóbulos e revestimentos naturalistas nas chanfraduras das jambas e de capites puramente árabes, de calcário, em profusa ornamentação rendilhada. Outro tipo mais representativo do mudejarismo, da mesma origem e ligeiramente posterior, subsiste no pátio da casa, figurado por dois balcões de arcos de ferradura, de tijolo, ultrapassados e denticulados. Uma das janelas conserva a primitiva grade de ferro forjado com guarnição de bestiários estilizados, góticos. A frontaria do pavilhão principal para este pátio, sofreu graves descaracterizações na centúria passada, pois presume-se que a actual galeria do andar nobre, tapada com envidraçamento, seria primitivamente decorada por colunata manuelina ou da época do Renascimento. 

Os oito tramos que defendem o corpo térreo, estão protegidos por gigantes de granito aparelhado e nele abre-se parte de um claustrim de abóbadas nervuradas, sob o qual se vêem, mutilados e embebidos nas paredes alguns portados antigos, de pedra. Do mesmo período quinhentista são as dependências ogivadas do piso inferior, certamente de função utilitária, onde se instalou o primeiro núcleo museográfico da Casa Cadaval, inaugurado em 27 de Nov. de 1965. Subindo-se ao entre solo, por discreta escadaria de dois lanços de pedra, atinge-se a galeria que comunicava com as salas solarengas. Ao fundo isolou-se um curioso tramo de dupla arcada de volta redonda, com colunas esbeltas e capitéis de mármore branco, de Estremoz, decorados por elementos naturalistas, do estilo híbrido manuelino-mudejar. No começo do corredor rasga-se a entrada nobre, singelo portado de calcário poroso, em arco de carena pouco acentuado, de emolduramento encordoado, liso e terminado em opulenta pinha. A ornamentação do tímpano, fitomórfica e de atributos exóticos lembra, pelo seu acentuado populismo os motivos artísticos usados por Diogo de Arruda no claustro do Convento de Cristo de Tomar. No eixo do frontão, envolvido por sanefas adosseladas, a pedra de armas dos Melos - De oiro, com seis bilhetas deitadas, de vermelho, cada uma carregada de um besante de prata. É obra de c.ª 1515, do tempo do 1.° Conde de Tentúgal. 

Os antigos jardins da casa, transformados actualmente em quintalejo de verduras hortícolas e arvoredo frutífero, separa o corpo habitacional da igreja dos cónegos azuis, cujo prospecto, do lado ocidental, apoiado nos arcobotantes caiados de branco, oferece silhueta de impressionante gravidade e pitoresco. A fachada neste ponto é discreta de formas de arquitectura, com janelas rectangulares, de ombreiras graníticas, algumas chaminés salientes e coberturas de telhados de quatro águas pouco inclinados, correndo em grande extensão no piso rasteiro, uma alpendurada de três faces com eirado de acesso à escada da tribuna privativa dos Duques de Cadaval, primitivo oratório, integrado no corpo da nave da igreja de S. João, e ao mutilado parque, onde existe a interessante estufa da torre romana, com delicado portal de ajimez, de tijolo vermelho, dos começos do quinhentismo. Esta arcada, constituída por vários tramos assimétricos, em arcos de volta perfeita, quebrados e abatidos, suportados por abóbadas nervadas, de aresta viva, é obra popular da segunda metade do séc. XVI. No interior do edifício existem amplas salas e cómodos que assinalavam a nobreza e opulência da ilustre família, mas obras de artes decorativas, em pintura mural ou de arquitectura, se as houve, desapareceram por completo durante os vários arranjos práticos impostos pelos inúmeros contratos de enfiteuse, a partir de 1834, pois desta data em diante jamais um donatário o habitou. 

BIBL. D. António Caetano de Sousa, História Genealógica da Casa Real Portuguesa: Pe. Carlos da Silva Tarouca e Mário Tavares Chicó, Igreja dos Lóios de Évora, in A Cidade de Évora, 9-10, 1945; Reinaldo dos Santos e Raul Proença, Guia de Portugal, II, 1926; Túlio Espanca, História da Casa de Cadaval, in A Cidade de Évora, 43-44, 1960. ADENDA A Galeria de Arte da Casa do Duque de Cadaval, foi inaugurada no dia 27 de Novembro de 1965, pelo X Duque D. Jaime IV Álvares Pereira de Melo e sua esposa D. Claudine Marguerite Marianne Tritz, com a presença de autoridades religiosas, civis e militares e do Director do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, pintor Abel de Moura. Do seu recheio, nesta primeira fase de instalação, considerada provisória e essencialmente constituída por peças artísticas deslocadas da Igreja de S. João Evangelista, patrimonial dos mesmos titulares, apontam-se as seguintes, na sua maioria descriminadas em pormenor no texto próprio do Inventário: 1.ª sala: Campas de bronze, gótico-flamengas, de D. Rui de Sousa, Senhor de Sagres e Beringel, de sua esposa D. Branca de Vilhena e do cavaleiro Rui Paes. Escultura: Virgem com o Menino, de pedra de Anca, gótica, de inícios do séc. XV; N.ª S.ª dos Açougues, peça maneirista, de mármore, proto renascentista, da 2.ª metade do séc. XVI; S. Lourenço Justiniano, de madeira estofada, do séc. XVII, e N.ª S.ª da Vitória, de madeira policromada, de inícios do séc. XVIII (ambas muito arruinadas). Pintura: Virgem do Leite, fragmento de um retábulo do 1.° quartel do séc. XVI, de artista anónimo luso-flamengo, proveniente dos fundos antigos do Convento dos Lóios, ultimamente beneficiado em Lisboa e liberto de composições adventícias, setecentistas, de factura inferior (Alt. 1,44 x larg. 1,27 m); Três Santas (Alt. 0,66 x 0,37 m) e Casamento Místico de Santa Catarina (Alt. 0,67 x 0,37 m), tábuas de predela do 2.° quartel do séc. XVI, atribuídas com verosimilhança a fr. Carlos, do Espinheiro, também provenientes da extinta casa monástica de S. João Evangelista, mas actualmente de património do Estado e na sala expostos a título precário. Armas: Espada e capacete de guerra, de ferro laminado, de fins do séc. XV, que pertenceram ao 2.° capitão de Tânger D. Manuel de Melo. Mobiliário: Algumas bancadas de cadeiral do coro da igreja dos padres da Congregação de Santo Eloi. Muito notável é o núcleo de espécies documentais, manuscritas, pertencente ao conjunto da Biblioteca da Casa Cadaval, onde são destacáveis os forais da Leitura Nova, manuelinos, de Odemira (5-IX-1510), Cadaval (1-X-1513), Arega (26-XII-1513), Mortágua (8-1-1513) e Ferreira de Aves (10-II-1514); cartas de mercê, alvarás, régios, regimentos, instrumentos notariais relacionados com a ilustre família e o Livro das Menagens que prestaram os alcaides-mores dos castelos, fortalezas e cidades de Portugal e seus domínios aos reis D. Manuel e D. João III (1505-38). 2.ª Sala: Pintura - Retrato equestre de D. Jaime Álvares Pereira de Melo, 3.º Duque de Cadaval, de Pierre A. Quillard, e os retratos em busto de D. Rodrigo de Melo, 1.° Conde de Olivença, D. Maria I, D. João VI e D. Carlota Joaquina de Bourbon, telas de autores portugueses, anónimos, do último terço do séc. XVIII, sem merecimento artístico. Mobiliário: Dois pares de cadeiras portuguesas do período barroco, do tempo de D. Pedro II - D. João V, com braços e espaldar, ou singelas, de costas e fundos de couro repuxado, com ornatos flóricos e de figuras e animais; Par de tamboretes e um banco de espaldar de quatro assentos, pregueado e revestido de couro lavrado, recoberto de albarradas e festões; Contador português do séc. XVII e papeleira, estilo D. José, ambos de pau-santo e guarnições de metal amarelo. Este conjunto pertence, na totalidade, ao Museu Nacional de Arte Antiga e encontra-se no local em depósito. As colunas salomónicas, douradas, ornamentais, pertenceram aos altare

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Palácio dos Conde de Murça


Foi fundado na antiga Rua de Alconchel, por D. Rui de Melo, conselheiro de D. João III e avô de D. António de Melo, que o terminou nos fins do séc. XVI. Deste cavaleiro e de sua mulher D. Francisca Henriques (descendente do caçador-mor do rei Piedoso), D. Jorge Henriques, nasceu o ilustre varão D. Jorge de Melo, grande patriota e um dos nobres aclamadores de D. João IV, em Évora, o qual, sendo casado com D. Margarida de Távora, filha de D. Pedro Guedes, senhor de Murça, foi progenitor de D. João de Melo, bispo-conde de Coimbra, instituidor do morgado da Figueira da Foz (1624-1704) e de D. Pedro de Melo, governador da Província do Maranhão, no Brasil. O1.° morgado da Figueira, D. António José de Melo, foi consorciado com D. Joana de Mendonça, primogénita de D. Pedro Guedes de Miranda, senhor de Murça, e tiveram a D. Pedro José de Melo, o qual se matrimoniou com D. Maria de Bourbon, filha de D. Jorge Henriques, senhor das Alcáçovas e descendente do rei de Castela, D. Henrique de Trastâmara. Deles descenderam D. José Maria Rita de Castelo Branco, 1.° Conde de Figueira da Foz, morto sem geração, e D. Miguel António de Melo, 3.° neto do fundador da casa de Évora, que morreu no ano de 1836 investido no título de 1.° Conde de Murça. 

A última donatária do solar, D. Antónia José de Melo, casada com o oficial de engenharia Bernardino Pinheiro Correia de Melo, vendeu o imóvel ao lavrador José Rosado de Carvalho, que o transformou, profundamente, a partir de 1894. Em 1948 foi adquirido pelo Estado a Alberto Leger Rosado de Carvalho, conhecido proprietário do Monte do Barrocal, e nele se instalou a Delegação Provincial da F. N. A. T. O edifício, que era primitivamente de pequeno porte e delimitado por habitações de Damião Fernandes, Belchior da Silva e do cavaleiro Duarte Afonso, veio a absorver, em 1542, por compra de D. Rui de Melo à Câmara, parte dos terrenos públicos, compreendendo um beco e o vão sobrepujante ao chafariz dos cavalos, onde se armou uma frontaria com balcões contíguos ao adro da ermida de Santo Antoninho para se verem os touros e demais cavalhadas na Praça Grande (Geraldo). A D. Jorge de Melo e sobretudo a seu filho D. António de Melo se deve, em conclusão, o remate da obra, a qual, segundo escritura lavrada em 1590, com o Senado, se delimitou entre a esquina da Rua dos Caldeireiros e o terreiro da nova Colegiada de Santo Antão, lugar onde se armavam as tribunas dos Inquisidores do Santo Ofício. Neste pavilhão do palácio, em passadiço sobre o chafariz público guardava-se interessante e original colecção de retratos dos condenados em Autos da Fé, que se perdeu por destruição intencional, depois de 1730. 

O vasto solar, que chegou aos fins do séc. XIX com as fachadas primitivas do quinhentismo, perdeu, em absoluto, a silhueta clássica, substituída pelo arranjo monótono e descaracterizado actual, de rasgadas janelas de sacada com guarnições de massa e balcões de ferro fundido. Nas obras respeitaram-se, todavia, no corpo térreo, algumas aberturas rectangulares, de duplas molduras paralelas, de granito e o alto portal, rematado em padieira rectilínea de volutas barrocas, sobre o qual existia, segundo parece, o brasão de armas dos donatários, que esteve muitos anos no Monte do Barrocal servindo de tampo de um poço. Este armorial, de mármore branco, de oiro, com seis bilhetas deitadas, de vermelho, cada urna carregada de um besante de prata, foi colocado conjecturalmente na fachada sobrepujante ao chafariz, a instâncias da Comissão Municipal de Turismo, no ano de 1946. O chafariz, que continua encravado no paço após as modificações introduzidas nos fins de novecentos, quase no topo superior da Rua de Serpa Pinto, foi construído pelo Município afim de aproveitar as águas correntes da Fonte da Praça do Geraldo, anos depois da fundação do Aqueduto da Água da Prata, na 2.ª metade do séc. XVI. Na feição actual nada de particular o recomenda no domínio arqueológico. Grande arco abatido com moldura de alvenaria, de ornamento central escaiolado, protege alta taça de placas de mármore e, no vão, duas carrancas do mesmo material, de representação antropomórfica, do quinhentismo, desfiguradas pela acção do tempo. Escapou, quase intacto, o famoso claustro da Renascença, dos meados do séc. XVI, em colunata dórica e pilastras de forte aparelho granítico, patinado, composto por três faces abertas, de quatro tramos e vãos de volta perfeita, sendo o do lado oriental fechado com dependências térreas, de amplos salões coevos, de planta assimétrica, de grossos pilares quadrados suportando abóbadas de aresta, arcos abatidos e de volta redonda. 

A galeria superior, de colunelos toscanos, de mármore branco, também da ordem dórica, com friso clássico ornamentado por triglifos na arquitrave, está obstruída por caixilharia envidraçada, moderna; foi, recentemente, beneficiada pela Direcção Geral dos Edifícios Nacionais, que lhe apeou uma falsa platibanda com reposição de algumas boas peças de cantaria. Esta quadra é a melhor construção do seu género de arquitectura civil existente em casas nobres de Évora: os tectos, são de aresta viva ou de nervuras de alvenaria, e o corpo de entrada, vasto como um grande salão, elegante obra de arte palaciana, está robustecido por colunas toscanas de granito, suportando o arranque da abóbada, com estrela polinervada, de aresta viva, tendo ao centro curioso boceto esculpido na figuração da Cruz de Cristo. A escadaria de acesso ao primeiro andar, aberta em sóbrio mas bem proporcionado portal granítico, concebido nas linhas sóbrias do classicismo final, conserva as linhas originais, que foram, todavia, estruturalmente refeitas no século passado e as paredes revestidas de estuques em relevo, ao gosto neo-clássico, por artistas de Afife. Numa das salas do corpo nascente subsiste interessante lavabo de mármores regionais, negros e brancos, do estilo barroco, com depósito de três almofadas e frontão interrompido, cronografado de 1690. O oratório antigo, que conservava baixo rodapé de azulejos seiscentistas, foi completamente transformado. 

BIBL. Túlio Espanca, A Cidade de Évora, n.º 25-26, 1951, pág. 498-500.