A matança do porco é uma prática de há muito enraizada nos hábitos do povo alentejano. Nasceu, segundo reza a tradição, entre os rurais que, labutando de sol a sol nas terras dos senhores de pendão e caldeira, tinham necessidades alimentares que as parcas jornas não conseguiam suprir. O pão, as azeitonas ou de onde em onde, uma peça de caça miúda surripiada, com passagem directa ao fogo ou à panela, eram aconchego de pouca substância, para quem alombava em tão rudes tarefas.
A comida dos ganhões, nome por que eram conhecidos os trabalhadores do campo no Alentejo, compunha-se normalmente das rotineiras e pouco substanciais sopas de cebola, hortelã ou de qualquer outra erva aromática, em que o distrito ou o concelho de Évora passam por ser os mais férteis do país. Em dias de festa o patrão lá abria mão de um galináceo, de alguns nacos de carne de porco ou, até, de um ou outro enchido, que durante alguns dias forravam o estômago dos pobres.
Curiosamente, até meados do século XIX os suínos tinham sido considerados pelos grandes terratenentes como animais sujos e imundos, parentes abastardados dos javalis e por isso indignos de comparecerem às mesas requintadas. Contudo, a sua carne, muito saborosa e suculenta, foi-se impondo ao paladar mais exigente, ao mesmo tempo que o seu valor alimentício ia paulatinamente ganhando estatuto entre as gentes de maiores posses. E se, entre estas, só as partes mais nobres eram consumidas, nas vilas e aldeias vingava a ideia de que tudo no porco podia ser aproveitado.
Assim se foi desenvolvendo o hábito, entre os menos bafejados pela sorte, de se adquirir anualmente, e ainda que com grande sacrifício, um pequeno bácoro para ser abatido à entrada do Inverno, na altura dos grandes frios. A sua criação não envolvia grandes gastos, dado que as bolotas caíam quotidianamente e em abundância dos sobreiros e a erva podia ser livremente pastada nos montados de sobro e azinho. E o seu abate contribuía para equilibrar o orçamento familiar e garantia o sustento por muito tempo, até à próxima matança, se possível, fazendo-se uma gestão controlada da carne.
Costume secular, a matança sempre foi feita em tempo certo, por alturas dos grandes frios, nos meses de Janeiro e Fevereiro. Duas razões concorriam para isso: este era o período em que as actividades agrícolas se reduziam ao mínimo e em que, por sua vez, as baixas temperaturas ajudavam à conservação dos produtos. A operação de abate, para além de não ser fácil, envolve um ritual para o qual se convoca a presença de familiares e amigos. Normalmente inicia-se a um sábado. Durante um fim-de-semana, todos são poucos para cumprir a função de tudo aproveitar.
Cabe a um matador experimentado desferir o golpe fatal. Entretanto, cinco ou seis pessoas seguram-no pelas pernas e pelas orelhas. Os guinchos desesperados e sofridos do suíno, acompanhados de espasmos violentos, dão bem conta de uma agonia relativamente prolongada enquanto o sangue jorra para um alguidar. Os mais sensíveis estão afastados e só por ali aparecem mais tarde. Em seguida o animal é chamuscado e esventrado. Nesta fase alguns dos convivas já se aproximam para observar e confirmar a justeza do provérbio popular: «Se queres ver o teu corpo abre um porco». Retiradas as tripas e lavadas pelas mulheres, as mesmas são preparadas para as operações seguintes.
É então tempo de parar o trabalho e começar a festa. Ao almoço já se comem sopas de sarapatel, febras e torresmos fritos regados com bom vinho da região. Com os estômagos confortados e ao calor da fogueira armada desde bem cedo e reavivada sempre que o lume parece esmorecer, canta-se à alentejana até bem tarde.
No outro dia, a alvorada marca a necessidade do regresso à lide, que vai começar pelo desmancho do resto da carcaça. Segue-se o lento e cuidado ensacamento das tripas. Consoante a preparação a que são sujeitas, assim fazem os tão famosos enchidos da nossa terra: linguiças, chouriços, cacholeiras, farinheiras, morcelas e salpicões.
Outrora, a matança do porco estendia-se por várias casas e locais, num espírito comunitário e solidário. Quem tinha ajudado recebia posteriormente ajuda. Até meados de Março, conforme a extensão do Inverno, havia sempre festa, na certeza da chegada de mais um ano em que a barriga não padeceria privações. Mas, a pouco a pouco, a desertificação do mundo rural, o abandono dos campos e a adopção de novas técnicas agrícolas foram modificando a vida, mesmo a dos que continuam a querer resistir à perda dos velhos hábitos.
Actualmente, por via da imposição rígida de normas da União Europeia, a pretexto de homogeneizar comportamentos e globalizar princípios de saúde pública, a matança do porco, na sua versão tradicional, tem sido largamente combatida. No mínimo exige-se a presença de um veterinário que se faz pagar a peso de ouro. Outras regras sanitárias, como o abate em matadouro, desincentivam também a sua prática. Determinados imperativos de natureza ética têm ganho também terreno, condenando costumes ancestrais que os urbanos acoimam hoje de bárbaros.
Apesar de tudo, esta continua a fazer-se de forma clandestina em vilas, aldeias e principalmente em lugares ou montes isolados na vasta planície alentejana, onde todos se conhecem e a presença das autoridades não alcança. E mesmo que, à distância, algum eco lhes chegue dessas actividades, o que fazem é ignorá-lo para não cair no desagrado dos poucos que por ali ainda habitam.
Este ano, a Câmara Municipal de Évora achou por bem fazer a recriação deste hábito tradicional na Praça do Giraldo, com a óbvia exclusão da parte não permitida por lei, no intuito de fazer descer a ruralidade à cidade. Ali instalou dois carros de canudo e levantou um lume de chão onde as febras foram assadas. Sopa dos ganhões enriquecida com a presença da carne de porco e enchidos cozidos também foi colocado à disposição de quem a quisesse saborear. Grupos de cantares acompanharam a refeição, onde a pinga de estalo se fez notar. Turistas nacionais e estrangeiros, surpreendidos com este evento inédito, teceram loas à iniciativa que lhes permitiu conhecer melhor a história e os segredos de vida do povo alentejano.
Texto: José Frota
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