Em quase todo o território Junho é
tempo de folguedo, regozijo, arraiais e
espectáculos. No decorrer do mês celebram-
se os dias dos três santos populares:
Santo António (a 13), S. João (a 24)
e S. Pedro (a 29). A religiosidade passa,
porém, para segundo plano e é o tempo
festivo que alegre e efusivamente impera.
O profano então sobrepõe-se ao sagrado,
sem que ninguém se empenhe a censurar
o atropelo pagão.
É, pois, no decorrer desse período que
em Évora se comemoram as Festas da Cidade,
organizadas em torno da Feira de
S. João, criada por Alvará do Rei D. Sebastião,
datado de 1 de Março de 1568.
A sua primeira realização só ocorreu
contudo a 24 de Junho do ano seguinte
e teve lugar no Terreiro do Rossio de S.
Brás, seu cenário de eleição. Pelo tempo
adiante viria a converter-se na maior feira
ao Sul do Tejo, mexendo – e de que
Desde o seu início que a Feira de S. João se caracterizou
pelo cariz vincadamente agrícola.
Na segunda
maior cidade do país, por essa altura, o certame impôs-se
como o local indicado para os lavradores da vasta
planície efectuarem os grandes negócios e transacções
de gado. A ele viriam a acorrer, igualmente desde os seus
primórdios, mercadores e artesãos que aqui se propunham
vender também os seus produtos. Entre estes encontravam-
se os cirgueiros, os cirieiros (vendedores de
velas), os curtidores, os oleiros, os ourives, os filateiros,
os tecelões, os sapateiros e tantos outros.
Se para os lavradores havia um espaço próprio, para os
mercadores e artesãos a Feira era arruada. Estes instalavam
as sua tendas – ainda como hoje pequenas barracas
onde os vendedores se instalam, expõem e transaccionam
artigos e objectos – em ruas próprias, de acordo
com os respectivos mesteres e ofícios. Nesta zona de arruamentos
obedeciam a igual critério de arrumação as
chamadas lojas de capelas que vendiam quinquilharias,
fitas, linhas, retrozes e outras miudezas de costura e de
modas.
Espaços especiais havia igualmente para as tabernas,
saltimbancos, funâmbulos, acrobatas, aramistas,
bonecreiros, comedores de fogo, vendedores de banha
da cobra e bailarinas, tal como os aguadeiros podiam
circular livremente pelo terrado desde que não perturbassem
os outros.
Este foi o paradigma quase imutável da Feira até aos
princípios do século XIX. Durante duas centúrias e
meia foi alargando o tempo de duração, que começou
por ser de três dias e paulatinamente se foi estendendo
aos oito, ainda que em diversos períodos de instabilidade
político-militar tivesse sofrido alguns interregnos.
Entretanto, a pacificação das relações com Espanha e o
fim das invasões francesas vieram a conferir a todos, lavradores
e artesãos, principalmente, uma segurança até
aí desconhecida.
Pode dizer-se que é a partir de 1848 que na Feira começam
a ser introduzidos novos elementos, que não a
desvirtuam, antes pelo contrário a enriquecem, alargando
o leque de actividades que proporciona aos seus
frequentadores. Nesse ano as touradas passam a ser incluídas
nos festejos, enquanto as companhias de teatro
ousam montar tenda na feira para apresentarem os seus
espectáculos, escolhidos de propósito para a ocasião.
Aparecem em edições seguintes os domadores de répteis,
que aproveitam o seu estado de hibernação para
os manterem sob controle. Crescem as
tabernas episódicas e surgem as primeiras
tendas de fotógrafos. Os circos organizados
estabelecem-se por vários dias e
as bandas filarmónicas e militares, dos
regimentos fixados na cidade, exibem-se
por todo o lado.
Nem o novo regime republicano se
atreveu a mexer no modelo da Feira, que
cresceu desmesuradamente nas décadas
seguintes. Com a Campanha do Trigo, os
vendedores agrícolas floresciam, o dinheiro circulava com alguma abundância
na cidade e a Feira era um bom sítio onde o gastar. O combóio
e as camionetas de carreira (assim se designavam ao tempo) lançavam,
nesses dias de febril excitação, vagas de forasteiros e muitos eborenses,
os quais, tendo saído do seu torrão natal para ganhar a vida noutro
lado, aqui regressavam para reviver tempos antigos.
Na década de 50 do último século, a Feira de S. João tinha atingido
o seu auge, acabando por ficar imortalizada na Literatura Portuguesa
através de três grandes escritores: Fernando Namora, Vergílio Ferreira
e Antunes da Silva. O primeiro, médico em Pavia durante muitos anos,
retratou desta forma na sua obra “ Retalhos da Vida de um Médico”
(1949) o fascínio que a Feira exercia sobre as gentes do distrito:
«(...) Évora tinha, nesse dia o aspecto de um grande arraial provinciano.
Tal como nas festanças da minha aldeia, mas em ponto grande. A
gente da cidade e os maiorais das vilas, refrescavam-se nas esplanadas,
à espera da brisa do entardecer, de jalecas curtas e alforges, com a
merenda, andavam por ali como um rebanho atordoado. (...) No poente
permanecia um clarão, mas algumas luzes da feira já tinham sido
acesas.
À medida que o céu escurecia, esse delírio de fogachos de várias
cores tornava-se fantasmagórico. E excitava como um vinho quente.
Obrigava-nos a mergulhar os sentidos na fascinação. As vozes dos pregoeiros,
dos mágicos, dos vendilhões, ecoavam com um timbre mais
agudo sempre que o pessoal engrossava nas ruas afluentes do imenso
largo. A Rosinda já conhecera outras feiras, havia uma lá na aldeia em
todos os Junhos, mas esta era uma feira da cidade. Nenhum termo de
comparação (...).»
Também o beirão Vergílio Ferreira, em “Aparição” (1959), não lhe
ficou indiferente e fez dela uma síntese extraordinária:
«A feira abriu com grande excitação. Todo o Rossio se iluminou de festa
com fieiras de barracas, carrocéis, circos, stands de carros e máquinas
agrícolas, botequins, tendas de doçaria, de fotocómico, tômbolas, jogos de
argolinha, aparelhos de buena-dicha com variantes de passarinhos que tiram
o papel da sorte, tiro ao alvo, aparelhos para demonstração de forças,
solitários vendedores de água com uma bilha e um copo ao lado, vendedores de mantas, de escadas, de cestos – sob
um céu duro de alto-falantes e poeira e vibrações
luminosas.
Noite de S. João, noite
cálida de bruxas e de sonhos (...)».
Por sua vez Antunes da Silva, eborense
de nascimento que por perseguições
políticas foi obrigado a ir viver para a
Amadora, fez seu o lamento de muitos
conterrâneos que não podiam vir a Évora
nessa data, em apontamento escrito no
seu diário “Jornal I”:
«Aproxima-se a Feira de S. João na minha
terra, que este ano promete. Évora às
janelas, nas ruas, nas igrejas, nos claustros,
nas touradas, nos jardins, mas sobretudo
em pacífica ebulição de prazeres de uma
jovial natureza que se revê em acenos que
o marcam para a vida inteira.
Por força de uma mórbida passividade
ou mágoa, ou ainda por via de teimosas
vontades alheias, estou longe».
Era este, e ainda hoje é, ainda que mais
esbatido, o fascínio da Feira de S.João.
Texto: José Frota
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