Fez, no dia 6 de Setembro, duas décadas sobre o desaparecimento do pintor Manuel Paulino Ramos, o último dos artistas boémios da cidade. Prazenteiro e folgazão, sempre atarefado no seu passo miúdo e saltitante, optimista perante tudo e todos, de piada fácil e espontânea, palavroso e bem falante, quem não se recorda do mestre Paulino, de chapéu mole e nariz à Cyrano de Bergerac, atravessando as ruas do burgo em direcção ao seu local de trabalho ou, em alternativa, encaminhando-se para o “Fialho”, que o estômago de um bon vivant também tem razões que a razão desconhece, como diria Pascal em relação ao coração? Esta é por certo a imagem mais intensa que permanece na memória de quem o conheceu ou de quem, com ele, alguma vez se cruzou nas andanças do quotidiano da cidade que ele tanto amou. E no entanto Paulino Ramos não era natural de Évora, nem sequer da região, o que muito o desagradava. Se o queriam ver destemperado, era alguém falar-lhe no assunto, a ele, que a fala arrastada denunciava como um puro alentejão. A verdade, porém, é que vira a luz do dia a 26 de Julho de 1923 na transmontana cidade de Vila Real. Seu pai, eborense de gema e sargento músico de profissão, ali fora parar na sequência de uma das muitas convulsões político-militares em que a I República foi fértil. Nas Terras Frias do Nordeste conheceu uma senhora, órfã, mas de alguns haveres e cabedais, com quem veio a consorciar-se. Mas os mesmos ventos políticos que o levaram para Vila Real acabaram por determinar o regresso a Évora. Foi apenas com dez dias de existência que o pequeno
Manuel bebeu o ar da planície e não mais daqui arredou. Na escola primária aconteceu o episódio que o havia de levar a uma fecunda carreira de pintor autodidacta. O Ministério da Instrução havia decidido promover um concurso a nível nacional para seleccionar trabalhos destinados a representar Portugal num certame internacional, a realizar em Bruxelas, para estudantes daquele grau de ensino. Um quadro seu foi seleccionado para a exposição final e mereceu uma menção honrosa, o que lhe serviu de estímulo para o futuro. Acabado o curso primário, Paulino ingressou na Escola Comercial e Industrial de Évora. Concluídos os primeiros dois anos, passou à condição de trabalhador-estudante, tendo arranjado emprego na firma João Lopes Branco, onde se manteve durante largos anos. O adolescente medrou e tornou-se homem feito, mantendo o firme propósito de ser artista plástico. Comprou tintas, pincéis e cavaletes e instalou-se nas ruas e praças de Évora para melhor as sentir e enquadrar em traço próprio. Segundo a filha, Ivone, a técnica foi-a aprendendo com muitos artistas, nomeadamente aguarelistas franceses que por esse tempo invadiam a cidade.
A partir daí trabalhou imenso e produziu com afinco, num constante aprimoramento da técnica da pintura em “folha de ouro”, através da qual retratou, no seu estilo peculiar, a monumentalidade de Évora. Mas outras formas de expressão pictórica e artística, expressas em materiais bem diferentes, como os relevos em estanho, ou sobre cobre, não lhe foram alheias, ainda na exploração da temática eborense. Noutro campo ganharam realce os seus conhecidos “Pássaros de Poeta”, que estiveram em exposição permanente durante cinco anos consecutivos nas Casas de Portugal espalhadas por diversos países da Europa e da América. O seu trabalho em artes gráficas levou-o entretanto a mudar de emprego, ingressando no Fomento Eborense, Lda., na fase áurea desta empresa no sector da publicidade. Criou o logotipo das célebres pastilhas elásticas “Pirata” e foi o coordenador da revista infantil do mesmo nome. Mas não ficou por aqui e esbanjou a sua versatilidade criativa na execução de painéis de azulejo, vitrais e na construção de cenários.
Paulino Ramos produziu muito e muito vendeu. Com os proventos adquiridos, este excêntrico garimpeiro da arte eborense abriu na Rua das Lousadas “A Trave”, um misto de atelier e bar, lugar de encontro, reunião e convivência de artistas, cantadores, poetas e conversadores de tudo e de nada. Ali se casaram, durante mais de três décadas, a boémia e arte em noites de Outono e Inverno, ao acolhedor fogo de lenha alentejano. Depois teve ainda tempo para a instalação de um novo atelier no nº. 15 da Rua do Alfeirão, mais espaçoso, mais formal mas menos carismático. Só um imparável acidente vascular cerebral quebrou a energia deste homem que sorvia a vida a goles de inusitado prazer. Deixou-nos pouco depois, mas é de crer que o Paulino, da arte e da boémia, do riso solto e colorido, ainda nos espreite sorrateiramente, de quando em vez, no inesperado recanto duma qualquer travessa eborense.
ÉVORA MOSAICO nº 3 – Outubro, Novembro, Dezembro 09 | EDIÇÃO: CME/ Divisão de Assuntos Culturais/ Departamento de Comunicação e Relações Externas | DIRECTOR:
José Ernesto d’Oliveira | PROJECTO GRÁFICO: Milideias, Évora | COLABORADORES: José Frota, Luís Ferreira, Teresa Molar e Maria Ludovina Grilo | FOTOGRAFIAS: Carlos Neves,
Rosário Fernandes | IMPRESSÃO: Soctip – Sociedade Tipográfica S.A., Samora Correia | TIRAGEM: 5.000 exemplares | PERIODICIDADE: Trimestral | ISSN 1647-273X | Depósito Legal
nº292450/09 | DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
2 comentários:
Tenho duas obras dele na minha casa, que lhe encomendei - 1985/6/7? e essa fase permitiu-me alguma convivência, não o conhecia até aí pessoalmente, apenas o nome e a actividade, embora Évora seja um aldeia um pouco maior, mas deixou-me uma marca pessoal/artística/intelectual que nunca esquecerei ou até me chegar "alzeimer". Abraço "in memorium".
Tenho uma uma extraordinário obra do Mestre Paulino, pintada em folha de cobre, com recantos da sua Évora, que herdei do meu falecido sogro, um eborense de gema e Amigo do grande Mestre, que guardo com muito orgulho.
24OUT23.
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