O Recenseamento Eleitoral de 1911 revelou que a população do concelho se cifrava nos 26.663 residentes. Nas quatro freguesias urbanas viviam 17.907 pessoas, enquanto nas rurais habitavam as outras 8.764. A freguesia da Sé era a mais populosa, com 7.542 almas. Toda esta sociedade era caracterizada por uma mentalidade feudal, conservadora, submetida a um estratificação social praticamente asfixiante e que poucas alterações conheceu com o advento do liberalismo, o qual na prática se limitou a substituir a nobreza pela burguesia enquanto classe dominante e dominadora.
No concelho, as grandes propriedades passaram para as mãos de poderosos médicos, militares, bacharéis, negociantes e comerciantes, enquanto o clero secular vai sendo afastado dos conventos, vendidos ou adaptados a outros fins. No resto do país sucede o mesmo. O historiador Oliveira Martins, na sua obra “Portugal Contemporâneo”, sublinha que «à ordem clerical-nobiliárquica, se segue a da oligarquia fundiária de mãos dadas com a também nova oligarquia bancária». A servir de exemplo entre nós veja-se, em espaço próprio, como foram constituídos e quem eram os principais accionistas do Banco do Alentejo e do Banco Eborense, ambos formados em 1875.
Em “Viagens na Minha Terra”, escrito em 1846, já Almeida Garrett afirmava com convicção: «A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era; mas muito menos ainda pode ser o que é» . Por essa altura a burguesia eborense, avessa à vivência nos asfixiantes espaços domésticos, procurava encontrar no exterior espaços onde reunir, conversar, trocar ideias e debater o que se passava no Parlamento, o fórum nacional e público.
Assim nascem as sociedades de recreio ligadas aos partidos formados após a Regeneração, movimento que modernizou o país e trouxe para a vida comum a filosofia do romantismo, marcado pela idealização, pela evasão, pelo sonho e pelo escapismo. As festas burguesas eram assim marcadas pela futilidade, pelo aparato superficial das senhoras e pelo perfil rotundo e balofo dos respectivos maridos, de bolsos bem recheados mas quantas vezes prenhes de intensa ignorância. As sociedades organizavam bailes a qualquer pretexto, sessões de poesia a cargo de bardos que faziam do amor melancólico o seu único tema e no Passeio Público desfilavam vaidades masculinas e femininas. Em recantos escondidos nestes sítios elegantes jogava-se à batota mais reles e despudorada.
Apenas a paixão pelo teatro, que nesta cidade rebentou com grande autenticidade, e a formação de bandas filarmónicas subsistiam enquanto manifestações culturais de qualidade. Na edição nº.11 de 14 de Fevereiro de 1867 do Jornal “Districto d’Évora”, dirigido por Eça de Queiroz, o futuro escritor, com a acuidade que lhe era peculiar, denunciava esta estrepitosa forma de existência em que «nos esplêndidos salões das camarilhas, nos espaçosos vestíbulos, nos átrios de mármore, o ruído dos trens, o perpassar contínuo dos escudeiros e das escovas dos lacaios, que limpam o verniz das botas, abafam as vozes da multidão que se roja na miséria, que mendiga, que se desmoraliza cada vez mais».
Diversas referências a este tipo de vida na cidade deixou-as Eça, umas vezes expressas, outras apenas afloradas, igualmente em “O Primo Bazílio” e o “Crime do Padre Amaro”. Tudo isto ocorria com a cumplicidade dos clérigos, que, passado o primeiro impacto da expulsão fradesca, tinham voltado a viver em alegre conúbio com os poderosos. O abastardamento das suas funções e deveres agravou-se a partir de 1870 com a nomeação para Arcebispo de D. José António Pereira Bilhano, um homem já com 69 anos e bastante debilitado, acumulando achaques e mazelas de toda a sorte. Pouco tempo permaneceu em Évora, tendo recolhido a Ílhavo para ali viver o resto dos seus dias.
Durante cerca de década e meia depois o clero diocesano, com raras excepções, andou à rédea solta sem um superior que lhe fosse à palma. Quando D. Augusto Eduardo Nunes foi nomeado coadjutor do velho prelado ausente, já era tarde para pôr cobro ao vendaval anti-clerical que varria o distrito e o concelho. O ateísmo e o agnosticismo, filhos do cientismo, do positivismo e do relativismo haviam ganho adeptos entre os mais letrados, ao passo que entre o povo crescia a animosidade contra a venalidade dos padres. Reclamava- se o fim da submissão à tutela eclesiástica nos momentos mais significativos da vida de cada um. Neste contexto, fácil se tornou a difusão das ideias socialistas, anarquistas e republicanas que campeavam por todo o lado propondo o fim da ilusória sociedade romântica. A laicização do Estado e o cumprimento dos ambicionados ideais de liberdade, fraternidade e igualdade eram desígnios comuns.
O ano de 1875 foi decisivo para o arranque das primeiras instituições de carácter sindical no concelho, que desde logo entraram em acção. Curtidores de solas e cabedais deram início a uma greve que se prolongou por quatro meses. Outras manifestações de protesto se seguiram e até as costureiras, fartas de tanta exploração, encetaram encontros para fundarem uma organização de classe que não chegaram a concretizar. Nos campos trabalhava-se de sol a sol, o mesmo acontecendo nas lojas e nas fábricas, não havendo direito ao descanso semanal.
Por trás do brilho decadente e fin de siècle das sociedades recreativas e dos clubes de lazer que faziam de Évora uma cidade apetecida, a situação social do concelho era alarmante. Em comunicação apresentada a um colóquio sobre “O Século XIX em Portugal”, organizado em 1979 pelo Gabinete de Investigações Sociais, José Pacheco Pereira, (na altura ainda é só professor de História num liceu de Coimbra) escrevia que «a criminalidade e o banditismo assumiam as formas características de uma revolta social latente e mesmo nalguns casos, entroncam enquanto movimento social arcaico, em modernas formas de agitação e acção social e política».
Na ordenação por cidades Évora aparece mesmo num pouco lisonjeiro terceiro lugar, apenas atrás de Lisboa e do Porto, num tipo de ilícitos que abrangiam o roubo, a violência contra a propriedade (fogo posto em particular), a vadiagem e a violência contra pessoas (agressões e homicídios). Mas Évora ocupava igualmente lugar de destaque a nível nacional nas estatísticas da prostituição. Em 1900 havia na cidade 57 prostitutas registadas, distribuídas por 7 bordéis numa proporção de uma para 149 residentes, relação só superada pelo Porto e mais elevada que em Lisboa. A maioria das que se dedicavam à sua prática eram costureiras, criadas de servir e «teúdas e manteúdas». E na alta sociedade era moda o adultério, tolerado entre os homens e condenado entre as mulheres. Contra a corrente, um grupo de operários apaixonados pela música fundava nos finais de 1900 o Grupo Operário Joaquim António de Aguiar, afecto à Carbonária.
A reforma dos costumes foi iniciada com a tão discutida e radical Lei da Separação da Igreja e do Estado de 1911. Deixando de parte a questão do património construído que abordaremos noutro espaço, interessa aqui sublinhar a perda de estatuto social dos padres, que se viram afastados do ensino, proibida a realização de procissões e outras manifestações públicas de culto e confinados às suas residências oficiais que passaram ao domínio do estado. Foram abolidos os feriados religiosos e decretado obrigatório para todos o registo oficial civil de nascimentos, casamentos e óbitos, que eram sua prerrogativa, assim como foi aprovado o divórcio. Eliminadas foram ainda as despesas oficiais com o culto e a manutenção do clero, que poderia requerer ao Estado a concessão de pensões permanentes. Em Évora houve exageros e foi penosa a expulsão das Doroteias, que haviam regressado e abandonaram a cidade a 8 de Outubro de 1910.
Para tentar por cobro à criminalidade reinante foi decisiva a formação da Guarda Nacional Republicana, com competência especial para actuar nas zonas rurais, onde a criminalidade atingia o seu auge. O caso da prostituição e meretrício foi presente à primeira reunião municipal com o Delegado de Saúde a informar entre outras coisas do péssimo estado em que se encontrava o dispensário onde se faziam as inspecções às mulheres. A presença de médicos entre a primeira edilidade muito terá contribuído para ir resolvendo o problema e se apostar mesmo na recuperação de muitas delas.
Os patrões deixaram de ser “donos” dos seus empregados. As Associações de Classe cimentaram posições, os sindicatos foram crescendo e o recurso à greve ganhou força legal. Em Évora a greve de 1912 foi paradigmática da ascendente importância dos trabalhadores rurais, que nesse ano criaram o seu sindicato com os corticeiros a seguiram-lhe as pisadas. Na cidade se realizaram igualmente os primeiros congressos nacionais de ambas as actividades, enchendo as suas ruas de gente laboriosa que noutros tempos não o fazia ou se a tanto lhes chegava a necessidade caminhavam humildes e cabisbaixos, vergados à sua condição de párias da sociedade.
Alterações importantes na vida das cidades ocorreram também no campo laboral, onde há muito se pugnava pela regulamentação de um horário para os trabalhadores do comércio e da indústria que consagrasse igualmente o direito ao descanso semanal obrigatório. Nas lojas e nas fábricas, em geral trabalhava-se todos os dias, do nascer ao pôr do sol. Em 8 de Março de 1911 o Governo Provisório, sob proposta do Ministro do Interior, António José de Almeida, decretou o dia de domingo como de descanso obrigatório para todos os assalariados, ficando no entanto a regulamentação a cargo dos Câmaras Municipais, a qual deveria estar concretizada no prazo de um mês.
Em Évora a edilidade só veio a dar por concluída a adaptação do diploma à realidade concelhia em finais de Março. Em 2 de Abril, a vereação presidida por Agostinho Felício Pereira Caeiro e composta ainda por Manuel Gomes Fradinho, Francisco Maria Nunes, Manuel Raimundo Baleizão, João José d’Oliveira, António dos Santos Cartaxo e José Joaquim d’ Almeida, aprovou o regulamento que entrou de imediato em vigor. Assim se estabeleceu o direito ao descanso semanal de 24 horas seguidas, normalmente aos domingos, exceptuados alguns casos relevantes, nomeadamente para os empregados dos hospitais, em que seria cumprido por turnos. Nos estabelecimentos de barbearia e cabeleireiro, de fotografia e no caso dos ferradores, o dia de descanso era a segunda-feira.
Mas aos menores de dezasseis anos, de ambos os sexos, em nenhuma circunstância e sob nenhum pretexto poderia deixar de ser concedido o descanso ao domingo. O artigo 5º. do regulamento esclarecia que eram considerados assalariados «todos os indivíduos que estivesse ao serviço de outrém, mediante retribuição por salário fixo ou variável, comissão, participação nos lucros ou qualquer forma convencionada e todos aqueles que prestem serviço sem remuneração, ainda que sejam filhos ou parentes dos proprietários dos estabelecimentos em que se empreguem».
Texto: José Frota
Sem comentários:
Enviar um comentário