«Elisa não podia casar. As dioptrias de Elisa eram muito grandes. Na vista esquerda tinha 16 dioptrias e na direita 13. Tinha miopia e astigmatismo. Era míope. Mas esbelta, gorda, no entanto engraçada. Luís é que a pretendeu, andou atrás dela e casou com ela. Mas toda a gente dizia que Elisa não podia casar, era muito míope. Só Luís conhecia os seus sentimentos, a sua esbelteza em mulher gorda e forte, a levou para a cama e casou com ela. Luís dizia enquanto namoraram - «Eu quero-te Elisa, porque te amo muito.» Elisa aceitava e respondia, - «Luís, mas sou muito míope.» (...) Era em Évora que se passava a acção, era em Évora que isto se dava».
Assim começa a novela “As Dioptrias de Elisa”, da autoria de António Luís Valente Gancho, nado nesta terra em 1940, e que desde cedo começou a fazer-se notar como poeta de rara imaginação e talento. Tinha 17 anos quando publicou o seu primeiro poema nas páginas do jornal mensal de artes e letras local, “dom Quixote”, propriedade de Manuel Madeira Piçarra. A composição tinha por título «Na África há-de ficar minha alma...» e deixava adivinhar já a soturnidade que o dominava e marcaria toda a sua existência: «(...) Na África há-de ficar minha alma/Uivando porque será uma hiena/Que romperá/as noites luarentas de todo o pesado Continente » ou mais adiante: «(...) E meus olhos/Existirão dependurados da noite/Por todas as árvores/ Sendo o mistério da selva/E o mistério da noite/-Da noite inundados/Pelo longínquo vento dos/Chacais».
Pouco depois abala para Lisboa, onde começa a frequentar o célebre Café Gelo, situado num cotovelo da Praça do Rossio e conhecido como tertúlia oficiosa do Movimento Surrealista. Ali se encontravam regularmente Mário Cesariny, Pedro Oom, António José Forte, Herberto Helder e Luís Pacheco, entre outros. Este último definirá, na sua obra “Textos de Guerrilha”, editada em 1979, o grupo como heterogéneo, de afinidades electivas, estético-políticas e no qual se mesclava «um cheirinho de homossexualismo, um grãozinho de génio nalguns, inconformidade geral, anarquia nos espíritos e nos propósitos de quase todos».
Por esse tempo já António Gancho dava sinais de episódicos transtornos mentais.
À passagem dos 20 anos tentou suicidarse, pelo que o pai o internou no Hospital Júlio de Matos. Saiu alguns meses depois, mas as alucinações e as crises de desdobramento de personalidade (dizia ser Luís de Camões, Bocage, Pessoa, Kafka e todos os artistas da palavra que admirava) acentuaram-se progressivamente. Passou por outros hospitais psiquiátricos até que, em 1967, foi internado definitivamente na Casa de Saúde do Telhal.
Nos momentos de lucidez entregava-se à poesia, paixão e necessidade de sempre. A mãe, Herberto Helder e o pintor Álvaro Lapa, seu conterrâneo e amigo desde os verdes anos da infância e da adolescência, eram praticamente as suas únicas visitas. Em 1993, quando organizava o seu livro «Edoi Lelia Doura - Antologia das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa», Herberto Helder pediu a Gancho alguns dos seus poemas, para apreciação e possível inclusão no mesmo. Este entregou-lhe trinta e seis, dos quais Herberto seleccionou onze. Quando a Antologia foi dada à estampa, sob a chancela da Assírio; Alvim, a crítica saudou o aparecimento do novo autor, que no Telhal era apelidado de «Poeta Louco».
O dono da editora, Manuel Rosa, propõe-lhe então publicar toda a sua obra, que aparece em 1995 nos escaparates com o título genérico de “O Ar da Manhã”, o qual, segundo o próprio autor, agrupa quatro livros num único volume: “O Ar da Manhã”, “Gaio do Espírito”, “Poesia Prometida” e “Poemas Digitais”. Em rigor, trata-se de uma colectânea de toda a sua poesia, desde os anos 60 até aos 80. Em resposta a um pedido de Manuel Rosado, que lhe pede uma definição curta sobre Gancho, Herberto Helder classifica-o de «poeta nocturno ». E, na verdade, fazem sucesso poemas como aquele que abre desta forma: «Noite, vem sobre mim sobre nós/ dá repouso absoluto de tudo/traz peixes e abismos para nos abismarmos/traz o sono traz a morte...» ou outro em que considera que «A poesia ouve-se na noite rumorosa onde sonham/ pássaros azuis e se ouve sempre útil e maliciosa/a voz negra e fundamental do galo», lembrando também em nova passagem a «Noite luarenta/ noite de mistério/noite tão sangrenta/solidão cemitério/ Na chaminé da planície/o Alentejo a solidar(...)».
Em epígrafe deixara escrito, ao jeito de sentido apelo à vida: «donne moi ma chance», por acaso - ou não -, o título de uma canção francesa na voz de Richard Anthony que fez furor nos anos 60. «Esta sólida revelação da poesia», como alguém na altura o apelidou, tinha já 45 anos. Portador de um discurso inovador, serviu-se das cantigas de escárnio para colocar em xeque os peralvilhos da palavra e os falsos entendidos da crítica. Assim os vergastou lapidarmente, seguindo de perto o modelo trovadoresco, num poema a que deu o título de “HOW RIDICULOUS THEY ARE” e é do seguinte teor: «Os intelectuais soen muy zurrar/Na literatura na poesia no café/Ai how they are/É verdade ou não, Lord Byron, é ou não é?/Nas pastelarias nas igrejas no café/Ai sobretudo no café/ É verdade ou não é, Lord Byron, é verdade ou não é?/ Ai how ridiculous they are/Zurrar o saben no da fror/Tempo em que as burras muito hão-de ganhar/ Como é de D. Dinis (com modificações) o teor.».
No ano seguinte (1996) Gancho confessou ao seu amigo Álvaro Lapa que tinha uma novela que gostava de ver publicada e tinha sido escrita em 1990 tendo Évora, terra de ambos, como cenário. Este falou no assunto a Manuel Rosa, que logo se ofereceu para a editar. Tratava-se de “As Dioptrias de Elisa”. A apresentação e o desenho de capa couberam a Álvaro Lapa. Em tom coloquial e linguagem despojada, repetindo palavras e frases, hesitações e alvoroços, Gancho conta-nos a história da vesga Elisa, uma bela mulher que nunca se viu como tal, porque as dioptrias lhe distorciam a realidade. Encarcerada nesta realidade, casara e tinha dois filhos. Mas não gostava de sair à noite, «sobretudo não via bem no meio da rua com as luzes, as luzes não chegavam». Nessas ocasiões, o filho Carlos conduzia-a pela mão, outras vezes era a filha e até o próprio marido. Mas esta existência sem horizontes de Elisa foi quebrada aos 40 anos quando percebeu que um belo jovem de 26 a desejava intensamente. A acção desenrola-se por 61 páginas e tem por cenário as deambulação locais e ruas da sua cidade: Jardim Público, Rua da Oliveira, Rua Mestre Lourenço, Praça de Giraldo, Rua do Calvário, Mercado Municipal e outros.
Com a cumplicidade de um velho que sorrateiramente descobrira a paixão devoradora que os abrasava, ambos viriam a amar-se intensamente durante dois dias e duas noites, aproveitando uma deslocação do marido e dos filhos a Mora para ver uns parentes dele. Depois... a vida prosseguiu. Esta sensualíssima novela, de contornos bem definidos no universo nocturno e solitário de Gancho, foi adaptada ao cinema numa curta metragem de 22 minutos co-produzida pela Filmes da Rua e RTP 2 em 2002, com realização de António Escudeiro e Sofia Sá da Bandeira no papel de Elisa. Por esse tempo já o dito poeta maldito se afundara num quadro de irreversível desagregação mental. Veio a falecer a 2 de Janeiro de 2006, há exactamente 5 anos, no dia em que completava 39 anos de internamento na Casa de Saúde do Telhal, em Sintra. Neste hospício escreveu toda a sua obra, com Évora na memória. Disseram uns que morreu a rir, outros que foi vítima de ataque cardíaco. O grande amigo Álvaro Lapa, que era da mesma idade e morreria um mês e nove dias depois - ou seja, a 11 de Fevereiro -, declarou, na circunstância, ao “Diário de Notícias” que António Gancho «era um homem de uma grande sensibilidade poética, mal tratado pela sociedade. Foi mais um caso de abuso psiquiátrico, de miséria nacional e institucional».
Texto: José Frota
Texto: José Frota
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