sábado, 3 de novembro de 2012

Lendas sobre Geraldo sem Pavor - Parte 1


QUEM ERA GIRALDO SEM PAVOR
    A lenda, ao apoderar-se de Geraldo Geraldes — mais conhecido por Geraldo sem Pavor — em vez de o deformar totalmente, atribuindo-lhe proezas inverosímeis, recreou-se em avivar as cores e em sublinhar os traços do panorama geral das suas façanhas, por maneira tão inteligente e hábil como o faria um romancista de talento que quisesse valorizar, perante os olhos maravilhados do leitor, os elementos básicos e mais significativos do carácter dos aventureiros do século XII.
   O seu apodo ou alcunha dá-nos logo uma ideia - síntese do homem: o Sem Pavor. Quase sem esforço de imaginação, apenas auxiliados pela imagem que a escultura medieval nos legou dos campeões do seu tempo, podemos evocar mentalmente este guerreiro destemido, que, tal como tantos contemporâneos seus parece que a morte mais o quer poupar quanto mais ele se ousa em desafiá-la.
   Dir-se-ia estarmos a vê-lo, estuante de vida, ameaçador na sua equipagem de cavaleiro medievo, bem tranchado e firme no seu corcel revestido de aço, lembrando um gigantesco crustáceo protegido de carapaça, rija, pendente à ilharga o pesado e comprido montante e bem segura na manopla de ferro a lança de acerada ponte. Montada e cavaleiros formam um todo de metal maciço, quase invulnerável aos golpes brutais das cimitarras e dos dardos mouriscos. Só vemos em movimento as pernas irrequietas do cavalo nervoso e os braços longos do cavaleiro, a agitarem a afiada e longa espada, no jeito de ceifar todas as cabeças ao alcance dos largos círculos rebrilhantes que a arma mortífera descreve vertiginosamente nos ares.
   Do homem propriamente dito, todo couraçado de ferro dos pés à cabeça, não se lhe vê senão a barba negra, emaranhada, e os dentes que riem sinistra e escarninhamente num rebrilho claro. A fronte e o cabelo ocultam-se-lhe sob o elmo, de viseira em grade, por detrás da qual espreitam uns olhinhos pretos, matreiros, de raposo esperto. Aos solavancos do pesado trote do seu cavalo, o solo estremece e, no topo do bacinete de aço reluzente tremula uma pluma clara e flexível, emprestando-lhe o vago aspecto de ave monstruosa, descida de um tenebroso horizonte de Apocalipse.
   Supõe-se que Geraldo Geraldes, oriundo de uma família nobre de apelido Pestana, nasceu na Beira. Em que localidade e em que data? Ignora-se. Não se desconhece, porém, que foi um guerreiro valentíssimo. Bateu-se com denodo ao lado de D. Afonso Henriques, contra os Mouros. A sua intrepidez em combate era tal que enchia de assombro o próprio rei, homem tão temerário como ele, e foi o monarca quem principiou a chamar-lhe “Sem Pavor”, honrosa alcunha lhe ficou.
   Arrebatado, impulsivo, o Sem Pavor travou-se um dia de razões com outro fidalgo da corte de D. Afonso, (D.Nuno). Não gostava este de tais conflitos entre a sua gente, pois todas as vidas dos seus vassalos se lhe afiguravam preciosas para as arriscar contra os muçulmanos. Punia severamente os cavaleiros que se batiam em duelo, preferindo que eles empregassem a sua bravura contra o inimigo comum.
   Era difícil naqueles tempos tão rudes, em que as questões mais comezinhas se decidiam pela violência, manter a disciplina entre homens que passavam a vida a vibrar cutiladas, os ofendidos não se lembravam de defender a honra senão com armas em punho. Aliás, o costume de dirimir questões pela espada perdurou barbaramente até aos dias de hoje. O duelo era, e ainda é, embora mais raramente, a concretização da ideia primária, própria do homem das cavernas, de que o mais forte é o mais justo: a força a substituir-se aos princípios de Direito, de Razão e de Justiça. Sem Pavor e o outro cavaleiro, ajustaram as suas contas por meio das armas, provavelmente no campo da liça, e Geraldo, mais destro, se não mais justo, matou o seu adversário.
   Provavelmente, temendo a ira de D. Afonso, ainda mais terrível do que a dos seus cavaleiros, Geraldo Sem Pavor fugiu apavorado... Andou a monte, para não cair nas malhas da Justiça um tanto bárbara de el-rei, que bem podia mandar corar-lhe a cabeça, punição reservada aos nobres, porque a gente vil, a que não podia ufanar-se de sangue do fidalgo, enforcavam-se. Foi acoitar-se na serra de Montemuro e, por certo, para melhor se defender da gente do soberano, ali construiu um castelo seu. Como nobre cavaleiro medieval, tinha ao seu serviço alguns homens de armas, a cavalo e a pé, prontos a dar a vida pelo seu senhor; pequeno núcleo fiel e aguerrido, para o que desse e viesse.
   Seduzidos pelo seu prestígio de cavaleiro audaz, outros proscritos, foragidos à justiça, apresentaram-se no castelo, a solicitar-lhe abrigo. E como aquela gente de guerra não sabia obter sustento senão pela força das armas e precisava de viver, dedicou-se, com o seu chefe à frente, à chacina e à pilhagem. Geraldo Geraldes formou, por assim dizer, uma forte quadrilha de salteadores, que passava o tempo a saquear os povos pacíficos da província. Desciam sobre povoações, como bando de corvos sobre montemuros, e quando retiravam, deixavam à retaguarda as aldeias despojadas de tudo, num coro de prantos, lamentos e imprecações.
   Se as razias e saques visassem somente os povoados mouriscos, talvez o monarca tolerasse, porque, em seu critério simplista e prático, comprovado em tantos actos da sua vida, todo o mal que se fizesse gente de Mafoma, inimiga da Cristandade, ainda seria pouco. O pior é que Sem Pavor, decerto por imperiosa necessidade de abastecimento, tanto atacava fiéis de Maomé como os Cristãos confiados à protecção do primeiro rei português. Por isso, este devia andar a jurar-lhe pela pele. Certamente não aguardaria senão alguma das raras oportunidades que a permanente luta com os muçulmanos lhe oferecesse, para organizar uma expedição punitiva contra o rebelde, e exterminá-lo.
   A fama das boas presas que fazia entres os Mouros e Cristãos atraía um numero cada vez mais avultado de proscritos e aventureiros audaciosos, ávidos de bons despojos. Diz-se que Geraldo Sem Pavor chegou a arregimentar assim, sob as suas ordens, quinhentos e vinte seis homens de cavalo e a correspondente turba multa de peões, pelo que se poderia computar a sua horda em duas mil e quinhentas a três mil unidades. Podia considerar-se um colosso naquela época. Saía do âmbito restrito de uma quadrilha, para ser um exercito, com a agravante de toda essa gente decidida e valorosa para a luta representar um desfalque enorme nas fileiras do exercito real.
   O aventureiro, porem, bastante arguto, compreendia que tal situação não poderia durar indefinidamente. É certo que o seu poder militar crescera, tornava-se muito importante num país quase despovoado, nesse tempo, em que se percorriam léguas de caminhos solitários, entre brejos e matas quase virgens, ou grandes extensões de charnecas incultas, sem se encontrar vivalma. Mas, um dia, quando menos o esperasse, estaria a contas com as tropas de el-rei; o embate seria terrível, e já se conhecia de antemão o derrotado. Seria ele, Giraldo Sem Pavor... e sem apelo nem agravo. Afonso Henrique não lhe perdoaria a defecção, e os povos lesados clamariam iradamente por vingança. Se não perecesse em combate, a cabeça do rebelde cairia sob o cutelo do verdugo.
   Cada vez mais preocupado com as sombrias perspectivas do seu futuro, Geraldo começou a cogitar na maneira de sair airosamente daquela difícil situação. Um dia , mandou reunir bruscamente a sua numerosa horda de cavaleiros proscritos, no pátio do castelo, e arengou-lhe. Julgamos estar a vê-lo, alçado na sua robusta montada, cabeça despojado do elmo, grenha e barbas negras a emoldurarem o rosto crestado, o olhar dominador das suas pupilas de lobo voraz a passar lentamente em revista os guerreiros sisudos, bisonhos, em ansiosa expectativa. Que desejaria o chefe comunicar-lhes?
   O grande aventureiro expôs-lhe cruamente o dilema da situação em que se encontravam: ou continuarem a viver da pilhagem, do assalto à mão armada, como ladrões, ou prestarem a el-rei serviço tão grande, que este, passando de credor a devedor, não tivesse outra forma de liquidar a sua divida senão perdoando-lhe todos os delitos e cumulando-os de mercês.
   Em verdade, aquela vida de proscritos, que não se podia manter senão agravando velhas culpas com novas culpas, principiava a tornar-se inquietante, pelas negras nuvens de desforra impiedosa que se iam acumulando no horizonte de todos aqueles homens. Sim, era preciso descobrir processo de obter o perdão do monarca. Mas como? Aquela gente não o sabia. Geraldo, porem, sabia-o, mas não lho disse senão de maneira vaga. Asseverou apenas que se tratava de uma grande façanha em serviço de Deus, de el-rei e do reino.
   Ninguém ousou perguntar-lhe que espécie de façanha seria. Bastava a certeza de que ele era homem capaz de imaginar e pôr em pratica as proezas mais extraordinárias, como de sobejo o demonstrara em tantas e tantas ocasiões em que o tinham acompanhado. Todos estavam de acordo em segui-lo, nem que fosse para o Inferno, quanto mais para o Céu que suas palavras pareciam prometerem naquela alusão ao serviço de Deus, da nação e do rei.

Fonte: marcoseborenses.no.comunidades.net

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