«Eu não sei que tenho em Évora, que de Évora me estou lembrando...» cantou, como ninguém, Francisco José, em voz quente e arrebatadora que a todos fazia vibrar de inexprimível emoção. Certo, outros artistas, em tempos diferentes, interpretaram de forma excelente esta melodia tradicional, mas nenhum o fez tão sentidamente, arrancando-a do mais íntimo de si, lembrando a nostalgia de quantos, um dia, por imperativos da vida tiveram de a abandonar sem nunca a poder esquecer. Muitos rumos e trilhos percorreu mas nunca deixou de a entoar em pungente homenagem à terra onde viu a luz do dia, estudou e se fez homem. Francisco José Galopim de Carvalho nasceu em Évora, na Rua da Cal Branca, em 16 de Agosto de 1924. Segundo relata o seu irmão mais novo António Marcos (o famoso professor e investigador Galopim de Carvalho) em “Fora de Portas – Memórias e Reflexões”, a sua primeira grande paixão foi o jogo do bilhar, que começou a praticar assim que o tamanho lhe possibilitou estar à altura do tampo verde. Adestrada a técnica de manejar o taco e a arte de carambolar, passou a ser presença assídua em cafés e sociedades recreativas dotados de salas de bilhar, nomeadamente nas da Harmonia e FNAT, para se haver com os melhores, apesar de não passar de um adolescente.
Entretanto a sua voz bem timbrada e melodiosa começava a dar nas vistas. Apenas com 15 anos estreou-se a cantar em público interpretando o tema “Trovador” na revista musical eborense em dois actos, «Palhas e Moinhas, da autoria de Vasconcellos e Sá e colaboração de Raul Cordeiro Ramos. No final desse ano de 1939 passou a actuar nas galas do Liceu Nacional de Évora, organizadas anualmente por ocasião das festas do 1º. de Dezembro. O sucesso foi tal que as festas anuais da estudantada liceal jamais deixaram de contar com a presença do Chico Carvalho, como era então conhecido.
Com a voz romântica e aveludada enchia o coração das suas enamoradas, em serenatas de encantamento. E não se dispensava de ajudar algum colega a amolecer a alma de uma ou outra jovem mais renitente à corte de que era alvo.
Depois, com o ingresso nos estudos universitários, as ondas da vida levaram-no a passar o rio Tejo. Em 1948 apresentou-se no Centro de Preparação de Artistas da Rádio, munido de uma carta de apresentação para o seu director, o professor e antigo cantor Motta Pereira, e foi desde logo aceite. A partir daí profissionaliza-se, passa a ser Francisco José e abandona o curso de engenharia.
Dois anos mais tarde grava em Madrid “Olhos Castanhos”, tema que conhece um êxito extraordinário e o consagra definitivamente como cantor romântico. Seguem-se “Deixa Falar o Mundo” e “Ana Paula”, que lhe consolidam a popularidade já crescente. É esta que, transpondo o Atlântico, lhe vai valer um convite para em 1954 actuar no Brasil. Aquilo que se pensava não passar de um pequena digressão acabou por se converter numa prolongada estada em terras de Vera Cruz. Nelas conheceu um êxito sem precedentes, tendo-se tornado uma autêntica vedeta da televisão do Brasil, país em que viveu até 1980.
Em 1964 o cantor veio a Portugal e a Évora matar saudades de familiares e amigos. Na RTP souberam da sua estada e convidaram-no a apresentar um programa musical, em directo e à hora de maior audiência. Aceitou e cantou, maravilhando quem o ouviu. No final “partiu a loiça toda”, denunciando o quanto os artistas nacionais eram miseravelmente recompensados pelas suas participações nos programas televisivos, ao passo que os estrangeiros eram principescamente remunerados, pondo em causa a gestão político-cultural da administração da RTP.
O arrojo demonstrado levou-o a ter de comparecer para interrogatório na sede da PIDE, levado a cabo pelos respectivos beleguins. Não ficou detido mas foi-lhe levantado um processo por difamação, do qual veio a ser absolvido. Mas sempre que voltava a Portugal estava sujeito a apertada e incómoda vigilância desde o momento do desembarque até tomar o avião de regresso ao Brasil. Foi numa dessas surtidas várias ao nosso país que em 1973 lançou outro estrondoso êxito: “Guitarra toca baixinho”. O seu retorno definitivo ocorreu no início da década de 80. Em 1983 lança um último disco intitulado “As Crianças não Querem a Guerra”.
Já sexagenário voltou à Universidade para se licenciar em Matemática. Foi leccionar Geometria Descritiva para uma Universidade Sénior, obtendo em contrapartida autorização para assistir a aulas de outras matérias como Historia de Arte e Arqueologia, pelas quais nutria também grande afeição. Vítima de acidente cardiovascular, Francisco José faleceu a 31 de Julho de 1988, a duas semanas de completar 64 anos. Talvez que nos seus derradeiros instantes se tenha lembrado dos versos finais da canção que tão emocionadamente entoou: «… Olhei para trás chorando / Alentejo da minha alma / Tão longe, tão longe, tão longe / me vais ficando».
Évora Mosaico
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